quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

(Parênteses literários V: Euclides da Cunha e John Ford II: o falseamento da História oficial)


Mais um diálogo anacrônico entre Euclides da Cunha e Ford, sobre a maneira como a História oficial é feita de meias-verdades. Aqui, Euclides discorre sobre a invasão de Canudos pelas tropas do Estado e a degola covarde dos rebeldes capturados:
Um grito de protesto

Ademais, não havia temer-se o juízo tremendo do futuro.

A História não iria até ali.

Afeiçoara-se a ver a fisionomia temerosa dos povos na ruinaria majestosa das cidades vastas, na imponência soberana dos coliseus ciclópicos, nas gloriosas chacinas das batalhas clássicas e na selvatiqueza épica das grandes invasões. Nada tinha que ver naquele matadouro.

O sertão é o homízio. Quem lhe rompe as trilhas, ao divisar à beira da estrada a cruz sobre a cova do assassinado, não indaga do crime. Tira o chapéu, e passa.

E lá não chegaria, certo, a correção dos poderes constituídos. O atentado era público. Conhecia-o, em Monte Santo, o principal representante do governo, e silenciara. Coonestara-o com a indiferença culposa. Desse modo a consciência da impunidade, do mesmo passo fortalecida pelo anonimato da culpa e pela cumplicidade tácita dos únicos que podiam reprimi-la, amalgamou-se a todos os rancores acumulados, e arrojou, armada até aos dentes, em cima da mísera sociedade sertaneja, a multidão criminosa e paga para matar.

Canudos tinha muito apropriadamente, em roda, uma cercadura de montanhas. Era um parêntese; era um hiato; era um vácuo. Não existia. Transposto aquele cordão de serras, ninguém mais pecava.

Realizava-se um recuo prodigioso no tempo; um resvalar estonteador por alguns séculos abaixo.

Descidas as vertentes, em que se entalava aquela furna enorme, podia representar-se lá dentro, obscuramente, um drama sanguinolento da idade das cavernas. O cenário era sugestivo. Os atores, de um e de outro lado, negros, caboclos, brancos e amarelos, traziam, intacta, nas faces, a caracterização indelével e multiforme das raças – e só podiam unificar-se sobre a base comum dos instintos inferiores e maus.

A animalidade primitiva, lentamente expungida pela civilização, ressurgiu, inteiriça. Desforrava-se afinal. Encontrou nas mãos, ao invés do machado de diorito e do arpão de osso, a espada e a carabina. Mas a faca relembrava-lhe melhor o antigo punhal de sílex lascado. Vibrou-a. Nada tinha a temer. Nem mesmo o juízo remoto do futuro.

Mas que entre os deslumbramentos do futuro caia, implacável e revolta; sem altitude, porque a deprime o assunto; brutalmente violenta, porque é um grito de protesto; sombria, porque reflete uma nódoa – esta página sem brilhos...”
Euclides da Cunha. Os Sertões (1902). Rio de Janeiro: Record, 2010, p. 547-548.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Procedimento Operacional Padrão (Standard Operating Procedure, Errol Morris, Estados Unidos, 2008)

Documentário sobre os episódios de tortura e abuso cometidos contra os prisioneiros iraquianos de Abu Ghraib, este filme tem depoimentos impressionantes dos militares envolvidos nos episódios (a mais famosa dentre eles, Lynndie England, tem papel de destaque). Por um lado, é flagrante uma certa cara de pau em considerar os eventos como algo banal – o famigerado “estava apenas cumprindo ordens”. Um dos entrevistados chega a dizer algo como “não estávamos machucando ninguém, não matamos ninguém, estávamos apenas humilhando os prisioneiros para facilitar os interrogatórios”. Por outro lado, uma constante nos depoimentos é o discurso de que os militares condenados serviram como bodes expiatórios, uma vez que militares de mais altas patentes não foram punidos, apesar de terem sido no mínimo coniventes com a situação. Sabrina, uma das envolvidas, condenada a 6 meses de prisão, se coloca como heroína incompreendida: tirava fotos para registrar o absurdo que presenciava, para servir de prova mais tarde. Comentando uma foto em que aparece sorrindo e fazendo sinal de positivo ao lado do corpo de um iraquiano morto sob tortura, ela diz: “eu sei que minha expressão e meu gesto me condenam, mas eu nunca sei o que fazer com as mãos quando sou fotografada; além disso, eu precisava sorrir para aparentar naturalidade diante de tudo o que acontecia”. Morris aproveita as entrevistas dos envolvidos para questionar a verdade da imagem: um dos entrevistados diz algo como “a fotografia é apenas o registro de uma fração de segundo; não mostra o antes e o depois e, portanto, dá margem a interpretações que não condizem com a realidade”. Outra constante no discurso dos entrevistados é a de que o grande erro deles foi ter fotografado ou se deixado fotografar durante os abusos. Caso não houvesse registro, não ocorreria nenhuma punição, mesmo que o exército soubesse do ocorrido. Mais uma vez, questão de imagem: a punição foi necessária unicamente porque a imagem do exército e dos Estados Unidos foi abalada.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Por Trás das Câmeras (For Your Consideration, Christopher Guest, Estados Unidos, 2006)

Dirigido por Christopher Guest, roteirista e ator principal do célebre mockumentary “This Is Spinal Tap” (Rob Reiner, 1984), este filme tira um belo sarro da indústria hollywoodiana e da temporada pré-Oscars. A performance over the top de Catherine O’Hara é hilária e os personagens estereotipados de Harry Shearer (também protagonista de “Spinal Tap”), Parker Posey, Christopher Guest, John Michael Higgins e Eugene Levy são sensacionais. Estão presentes em papéis menores dois atores que fazem referência às versões britânica e estadunidense da série “The Office”, tributárias mais célebres hoje, talvez, do gênero mockumentary celebrizado por Guest e companhia: Ricky Gervais, criador e ator principal da versão original britânica, e John Krasinski, ator da versão estadunidense. Fica a curiosidade e a vontade de acompanhar melhor a carreira pouco comentada, mas certamente bastante talentosa de Guest (ainda não vi nem o obrigatório “Spinal Tap”).

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

(Parênteses literários IV: Euclides da Cunha, John Ford, A Conquista da Honra e o Morro do Alemão)

Apu Gomes/Folhapress

Estou lendo atualmente “Os Sertões”, do Euclides da Cunha, e tem se estabelecido entre este livro e a filmografia de Ford um diálogo interessante. Assim como Ford, Euclides também critica a construção mentirosa dos fatos oficiais e das lendas históricas em torno dos heróis da pátria. E é impressionante que, mesmo tendo sido alertados tantas vezes da artificialidade de relatos desse tipo, continuemos a ser engambelados hoje (vide a narrativa heroica construída há pouco pela mídia quando as forças do Estado invadiram o Morro do Alemão e plantaram lá uma bandeira do Brasil; alguém se lembrou de algum filme recente do Clint Eastwood?)
O cabo Roque
Nessas incertezas, a verdade aparecia, às vezes, sob uma forma heróica. A morte trágica de Salomão da Rocha foi uma satisfação ao amor-próprio nacional. Aditou-se-lhe depois, mais emocionante, a lenda do cabo Roque, abalando comovedoramente a alma popular. Um soldado humilde, transfigurado por um raro lance de coragem, marcara a peripécia culminante da peleja. Ordenança de Moreira César, quando desbaratara-se a tropa, e o cadáver daquele ficara em abandono à margem do caminho, o lutador leal permanecera a seu lado, guardando a relíquia veneranda abandonada por um exército. De joelhos, junto ao corpo do comandante, batera-se até ao último cartucho, tombando, afinal, sacrificando-se por um morto...

E a cena maravilhosa, fortemente colorida pela imaginação popular, fez-se quase uma compensação à enormidade do revés. Abriram-se subscrições patrióticas; planearam-se homenagens cívicas e solenes; e, num coro triunfal de artigos vibrantes e odes ferventes, o soldado obscuro transcendia à história quando – vítima da desgraça de não ter morrido –, trocando a imortalidade pela vida, apareceu com os últimos retardatários supérstites em Queimadas.

A este desapontamento aditaram-se outros, à medida que a situação se esclarecia. A pouco e pouco se reduzia por um lado, agravando-se por outro, a catástrofe. Os trezentos e tantos mortos das informações oficiais ressurgiam. Três dias depois do recontro, três dias apenas, já se achava em Queimadas, a duzentos quilômetros de Canudos, grande parte da expedição. Uma semana depois, verificava-se, ali, a existência de 74 oficiais. Duas semanas mais tarde, no dia 19 de março, lá estavam – salvos – 1.081 combatentes.

Vimos quantos entraram em ação. Não subtraiamos. Deixemos aí, registrados, estes algarismos inexoráveis.

Eles não diminuíram, com a sua significação singularmente negativa, o fervor das adesões entusiásticas”.

Euclides da Cunha. Os Sertões (1902). Rio de Janeiro: Record, 2010, p. 352-353.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Domínio de Bárbaros (The Fugitive, John Ford & Emilio Fernández, Estados Unidos / México, 1947)

Rodado no México, este filme tem como pano de fundo um país latino-americano fictício, dominado por um regime ditatorial que aboliu a religião, executando todos os padres. Aparentemente o único padre remanescente, o personagem de Fonda é o típico personagem fordiano que se sacrifica em prol da realização de seu dever, aqui o de pregar a palavra divina à população de seu vilarejo. O filme é uma alegoria da história de Jesus: Fonda é, naturalmente, Jesus, andando em sua mula e se sacrificando pelo povo, Dolores del Rio, a prostituta santa, é Maria Madalena, J. Carrol Naish, em sua sede pela recompensa por entregar o padre à polícia, é Judas, e Ward Bond, o bom bandido, é o ladrão arrependido crucificado ao lado de Jesus. O cineasta mexicano Emilio Fernández, além de produtor, é tido como co-diretor do filme, apesar de não ser creditado. A sequência de execução do padre é magnífica: o personagem sobe as escadas do pátio da prisão em contraplongé, ascendendo simbolicamente ao céu, enquanto o tenente assiste escondido de sua sala, envolto em fortes sombras. Assim que o padre é morto, o tenente, árduo combatente da religião como superstição, faz o sinal da cruz.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Mr. Mike's Mondo Video (Michael O'Donoghue, Estados Unidos, 1979)


Escrito e dirigido pelo ex-colaborador da revista de humor National Lampoon e primeiro head-writer (traduzível por algo como roteirista-chefe) do programa televisivo Saturday Night Live, este é um filme de esquetes, nos moldes deThe Kentucky Fried Movie”, parodiando o famigerado documentário exploitationMondo Cane” (1962). O resultado aqui também é, como de costume nos filmes do gênero, bastante irregular e alguns dos esquetes são bem sem graça (um deles é francamente inexplicável: um cara numa fantasia de vampiro cantando, por 4 minutos, em plano fixo e registro tosco de vídeo doméstico, uma música francesa com voz de cantora lírica; bizarro). Destacam-se as participações de Dan Aykroyd e Bill Murray, este último em aparição brevíssima. Há algumas pérolas, como a sequência em que soldados com a máscara de Mao Tse-Tung invadem a casa de uma família gringa pra destruir seus eletrodomésticos, rádio, televisão, jornais e revistas, ou o segmento do restaurante francês “No Americains”, que tem como especialidade tratar mal os clientes estadunidenses. Inicialmente planejado para ser exibido na televisão como um especial do Saturday Night Live, o filme foi rejeitado pela NBC por conta da tosqueira e acabou sendo lançado no cinema. O filme tem ainda a famosa interpretação de Sid Vicious para “My Way”, utilizada no ano seguinte em “The Great Rock n’ Roll Swindle” (Julien Temple, 1980), mas aqui, pelo menos na cópia a que assisti, a sequência está toda picotada, sem nada da parte cantada da música, ao que parece por problemas de direitos autorais.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

A Ilha dos Mortos (Survival of the Dead, George A. Romero, Estados Unidos / Canadá, 2009)


Mais para spinoff que continuação propriamente dita de “Diary of the Dead”, este filme retoma os personagens da Guarda Nacional com que os protagonistas daquele filme se encontram em dado momento. Este talvez seja o mais fraco dos seis filmes de Romero da série dos mortos-vivos, o que não significa nem de longe dizer que seja um mau filme. No enredo, os soldados da Guarda Nacional se refugiam dos zumbis em uma ilha na qual vivem dois patriarcas malucos de famílias rivais, que travam uma batalha a respeito da forma de lidar com os mortos-vivos. O primeiro deles crê que os zumbis devam ser exterminados a qualquer custo, mesmo se for preciso matar quem quer se oponha a isso, como os familiares das pessoas transformadas em zumbis. Enquanto isso, o segundo é um fanático religioso que se crê numa missão divina para curar os zumbis e trazê-los de volta à vida. Para tanto, mantém-nos acorrentados enquanto não se descobre a cura. É interessante como aqui o perigo não são os zumbis, relativamente inofensivos para os personagens que têm grande perícia no uso das armas de fogo, mas os vivos. O filme é, ao fim, uma alegoria da falta de sentido da guerra. A sequência final, em que os dois patriarcas, já mortos e transformados em zumbis, continuam a guerra sem fim, enquanto o personagem do sargento discorre sobre a falta de sentido das guerras, que consistem apenas em indivíduos defendendo bandeiras quaisquer, a razão não estando em nenhum dos lados, é sensacional. A analogia mais direta é com a Guerra do Iraque, que ainda acontecia enquanto o filme era realizado, mas pode ser aplicada a virtualmente qualquer guerra. Romero planeja ainda realizar pelo menos mais dois filmes da série, ambos também spinoffs de “Diary”. O primeiro teria como protagonistas o grupo de negros que montam um imenso armazém de suprimentos a partir do material que roubam em meio ao caos das cidades. O segundo teria como protagonista a garota texana, que foge da mansão em que o grupo se abriga no fim do filme. Longa vida à ex-trilogia dos mortos-vivos de Romero!

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Diário dos Mortos (Diary of the Dead, George A. Romero, Estados Unidos, 2007)


Interessante o diálogo que este filme estabelece com “Redacted”. Como ocorria com o soldado aspirante a cineasta daquele filme, aqui também o grupo de estudantes de cinema que faz o registro dos ataques de zumbis se depara com uma questão ética: como documentar o horror para além da curiosidade mórbida, do voyeurismo, em suma, sem se tornar conivente com ele? Irrita o quanto Jason, diretor do fracassado filme de terror de conclusão de curso que vira um documentário sobre os zumbis a partir dos ataques, insiste em não largar a câmera para não perder qualquer acontecimento, a ponto de colocar em risco a própria vida e, por fim, ser morto por um dos zumbis. No entanto, nossa relação com o personagem é ambígua, pois, ao mesmo tempo que antipatizamos com ele por conta dessa cabeça dura, sem ela não haveria filme. Outro diálogo que se estabelece entre os filmes de Romero e De Palma se refere às relações entre a grande mídia e a web 2.0 no trato com a informação e a verdade. Aqui a crítica aos noticiários das grandes corporações é mais explícita, limitados que são pelos compromissos empresariais. Apesar do discurso da namorada de Jason, responsável pelo corte final do material registrado pelo namorado, sobre blogs, videologs e redes sociais formarem um amontoado caótico de vozes, que mais encobrem que revelam a verdade, são esses meios de comunicação os responsáveis por retratar mais fielmente o que se passa com os ataques de zumbis.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Guerra sem Cortes (Redacted, Brian De Palma, Estados Unidos / Canadá, 2007)


Estou começando outro mini-festival, de filmes sobre a Guerra do Iraque, com este filme do Brian De Palma. Mesmo tendo lido alguma coisa sobre ele antes, não estava preparado para a porrada que é assisti-lo. Para retratar a presença de uma tropa estadunidense em território iraquiano, e em particular o estupro de uma garota iraquiana por dois soldados, De Palma multiplica os registros audiovisuais, como quem afirma que um único registro, uma única abordagem estético-narrativa não pode dar conta da realidade. Assim, vemos fragmentos de um diário audiovisual de um soldado aspirante a cineasta, fragmentos de um documentário francês sobre os checkpoints, registros de câmeras de segurança, webcams, blogs, noticiários televisivos. De Palma “reúne” todo esse material para fazer um retrato possível de uma guerra abjeta, estúpida, praticamente num filme de horror focalizando a estupidez e a brutalidade humana.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Idiocracy (Mike Judge, Estados Unidos, 2006)


Dirigido por Mike Judge, criador de Beavis and Butt-Head, este filme tem como enredo o clássico (ou batido) sujeito-cobaia-de-um-experimento-militar-é-congelado-e-acorda-500-anos-depois. Aqui a sociedade de 2505 é totalmente povoada de Beavis e Butt-Heads, pessoas completamente idiotas. A piada se esgota rapidamente e a presença dos bons Luke Wilson e Maya Rudolph como o casal protagonista não salva o filme, que é bem trash, no pior sentido.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Paixão dos Fortes (My Darling Clementine, John Ford, Estados Unidos, 1946)


Tristíssimo este filme de Ford, como são em geral seus filmes do pós-guerra. Henry Fonda faz aqui um papel que prenuncia seu personagem de “Rio Grande” (1950), que chega a uma comunidade cagando regra e querendo ajustar tudo à sua maneira. No entanto, ao contrário do filme posterior, aqui Ford se simpatiza com ele, até porque os bandidos que ele persegue são bem mais odiáveis. No universo do filme, o amor é impossível. Wyatt Earp se apaixona por Clementine, que, por sua vez, busca levar o auto-destrutivo e alcoólatra Doc Holliday (interpretado magnificamente por Victor Mature) de volta pra casa. No fim, como se presume, todos terminam sozinhos, cada um seguindo seu caminho. Novamente Ford utiliza uma fotografia expressionista, de forte luz e sombra, ressaltada pela vastidão do Monument Valley, filmado aqui em grandes planos abertos que realçam a solidão dos personagens. O mítico tiroteio em OK Corral é precedido por uma bela sequência silenciosa em que os irmãos Earp se dirigem ao local e na qual o tempo parece se suspender.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

À Prova de Morte (Death Proof, Quentin Tarantino, Estados Unidos, 2007)



Há algo mais redundante que falar bem de Tarantino? Alguns até tentaram falar mal na época de “Jackie Brown” (1997), que continua, na verdade, sendo um de seus mais belos filmes. Mas o fato é que não dá pra fugir do óbvio: Tarantino é, de fato, foda! Outra obviedade: o filme de Tarantino é bem superior ao seu filme-irmão “Planet Terror”, de Robert Rodriguez (juntos, os filmes compõem o filme duplo “Grindhouse”, como lançado nos Estados Unidos). Rodriguez tem claramente algum talento e até que tenta, mas é muito irregular (seu curta “Bedhead”, de 1991, e seu longa “Once Upon a Time in Mexico”, de 2003, são, de fato, muito bons; ainda não vi “Machete”, mas, pelas reações, deve ser outra pérola; por outro lado, “Desperado”, de 1995, e “Sin City”, de 2005, são bem ruins) e, na seara em que os dois trabalham, Tarantino é mesmo imbatível. É sensacional a forma como o diretor constrói no espectador um sentimento de ódio em relação a Stuntman Mike na primeira parte do filme, para depois se regozijar na fantástica vingança das meninas na segunda parte. A sequência final da batalha entre os dois carros é o ponto alto do filme, em um feeling girl-power semelhante a filmes anteriores do diretor, como “Jackie Brown” e “Kill Bill” (2003/2004). A presença de Zoe Bell, dublê de Uma Thurman em “Kill Bill”, interpretando a si mesma como dublê real e uma das mentoras da vingança contra o dublê fake Kurt Russell, revela um desejo surpreendente (para Tarantino) de prevalência do real sobre o artifício, corroborada pelo discurso do próprio Stuntman Mike na primeira parte do filme, lamentando o atual uso indiscriminado de computação gráfica nos filmes, saudoso de um tempo em que as cenas de ação eram feitas na tora, por dublês.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Ford em dois documentários de guerra



The Battle of Midway (John Ford, Estados Unidos, 1942)
December 7th (John Ford & Gregg Toland, Estados Unidos, 1943)


Tag Gallagher fala do período final da II Guerra Mundial como um período de transição na carreira de Ford. A partir dali, sua obra torna-se mais madura. De fato, a experiência de Ford na guerra foi uma puta oportunidade de exercitar o talento formal do diretor num gênero até então estranho para ele: o documentário. Os dois principais documentários rodados por Ford durante a guerra não poderiam ser mais discrepantes entre si na forma. “The Battle of Midway” é um registro real de uma batalha na qual Ford esteve presente, chegando a ferir o braço, ferida da qual nunca se recuperou totalmente. “December 7th”, por outro lado, é todo encenado, com muita filmagem feita em estúdio, reconstituindo o ataque japonês a Pearl Harbor, ocorrido dois anos antes. No entanto, as estratégias discursivas e o tom geral de propaganda dos dois filmes são bem semelhantes. Em “The Battle of Midway”, os soldados retratados são individualizados pela narração sentimental, que busca a identificação do espectador, dizendo num sotaque redneck coisas como: “Olha, esse é o Johnny, meu vizinho!” A estratégia de persuasão é forte e belissimamente utilizada por Ford. Em “December 7th”, o destaque para a sequência do enterro dos soldados mortos no ataque é bem típica de Ford, que gosta de dar especial atenção em seus filmes a rituais como danças festivas, enterros e paradas militares. Sobre a imagem de um túmulo com a bandeira americana, a narração fala sobre cada um dos soldados, dizendo seu nome, mostrando sua foto e apresentando seus pais em sua terra natal. O texto da narração é cheio de pérolas, como por exemplo no início do ataque, em “December 7th”: “At 07:55 AM hell broke loose. Man-made hell. Made in Japan”. A promessa de revide estadunidense no fim do filme (com a bíblica “quem matar pela espada, pela espada perecerá”) soa especialmente assustadora quando sabemos que, dois anos depois, os Estados Unidos atingiriam o Japão com duas bombas atômicas. Ambos os filmes, além de outro documentário de Ford sobre a Guerra da Coréia (“This Is Korea”, 1951), estão disponíveis para baixar gratuitamente no site Internet Archive.


quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Richard Pryor: Live in Concert (Jeff Margolis, Estados Unidos, 1979)



Registro de uma performance stand-up de Pryor. Como qualquer registro do gênero, algumas piadas envelhecem e não conseguimos captar todas as referências, muito ligadas à época. Mas a energia da performance do ator permanece intacta e é ela, enfim, o que interessa aqui. Pryor abusa de piadas politicamente incorretas, fazendo comentários que seriam considerados racistas em nossa época do politicamente correto. Há bastantes referências também à vida pessoal controversa do ator, seu uso de cocaína e seus enfrentamentos com a polícia.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Gigante (Adrián Biniez, Uruguai / Argentina / Alemanha / Espanha, 2009)


Biniez faz aqui uma bela releitura da comédia romântica, brincando com as convenções do gênero. A história é a de um segurança de supermercado que se apaixona por uma faxineira que também trabalha no local. O segurança passa a maior parte do filme observando a faxineira pelas câmeras de segurança ou perseguindo-a na rua depois do expediente. A cinematografia uruguaia ainda é bem incipiente, mas belos exemplos como esse ou os dos filmes de Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll dão bastante esperança do surgimento de uma boa filmografia no país.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

O Rei e o Pássaro (Le Roi et l'Oiseau, Paul Grimault, França, 1980)



Classificado pela Sight & Sound como uma das 75 “hidden gems” da história do cinema, em uma lista interessantíssima que a revista publicou em 2007, este longa de animação é realmente uma pérola. O desenho conta a história fantástica de uma camponesa e de um limpador de chaminés, temas de quadros do palácio real, que se apaixonam e saem das molduras para fugirem do rei, também apaixonado pela camponesa. A estrutura vertical da cidade em que o palácio real se situa e que reflete a hierarquia e a opressão dos ricos e poderosos contra os pobres lembra bastante “Metropolis” (Fritz Lang, 1927).

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

O Rei da Fuga (Le Roi de l'Évasion, Alain Guiraudie, França, 2009)


Há aqui uma sensação de vale-tudo da mise-en-scène que é bem benéfica à obra. O filme de Guiraudie exala um grande frescor, uma sensação de liberdade que, de certa forma, reflete o desejo de liberdade e desprendimento do protagonista. Situações inusitadas e aparições inesperadas de personagens são recorrentes. O enredo trata de um viado quarentão obeso que se apaixona por uma menina de 16 anos, interpretada por Hafsia Herzi, cuja beleza já havia chamado atenção em “La Graine et le Mullet” (Abdellatif Kechiche, 2007). Como assinala o título, o protagonista passa grande parte do filme fugindo: primeiro do pai da moça e da polícia e por fim da própria moça. O filme vai, assim, progressivamente adquirindo um clima absurdo de filme de aventura, que se soma ao tom cômico do início.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

O Retorno da Pantera Cor-de-Rosa (The Return of the Pink Panther, Blake Edwards, Inglaterra, 1975)


Terceiro filme da série com Peter Sellers, aqui o humor físico é intensificado em relação aos dois primeiros “The Pink Panther” (1963) e “A Shot in the Dark” (1964). Várias das piadas recorrentes, como a zoação com o sotaque de Clouseau que ninguém entende ou as lutas com o empregado chinês (chamado por Clouseau política-incorretamente de “homem amarelo”), funcionam muito bem, em grande parte devido à interpretação genial de Sellers. A lógica que rege o filme é a do desenho animado (sucessão de gags envolvendo tiros, carros sem freio, explosões, corpos queimados sem grandes conseqüências). Há inclusive uma referência-piscada-de-olho aos desenhos da Warner: o caminhão que Clouseau dirige sob o disfarce de limpador de piscinas é da empresa Acme Pool Services. Destaca-se o belo uso cômico da profundidade de campo na sequência em que Fat Man persegue Charles Litton. Os créditos, como em todos os filmes da série, são uma pérola à parte.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

A Longa Viagem de Volta (The Long Voyage Home, John Ford, Estados Unidos, 1940)



Mais uma obra-prima de Ford. De 1933 a 1940, Ford realizou pelo menos 8 delas, num ritmo impressionante (média de uma por ano). Este é um filme em que aquela sensação de filme “de galera” de que falei em outro post é bem forte. Estão aqui os habitués John Wayne, Ward Bond e Jack Pennick (este último fez nada menos que 41 filmes com Ford!) como parte da tripulação de um navio que transporta explosivos para a Inglaterra durante a II Guerra Mundial, mas só pensa no dia em que poderá sossegar em terra firme. O tom é de profunda melancolia e a sensação é de que a busca pelo sossego é inatingível para eles, como a terra almejada pelos guerreiros do conto “Carcassone”, de Lord Dunsany. Ford parece fazer aqui um filme profundamente pessoal, refletindo as inquietações de um homem perturbado, em busca de uma utópica paz de espírito. A fotografia de Gregg Toland, um ano antes do seu trabalho mais célebre em “Citizen Kane” (Orson Welles), é magnífica e retoma a influência do expressionismo alemão no trabalho do diretor, lembrando em muitos momentos “The Informer”, principalmente a parte final, em terra. Destaca-se a presença cômica dos irmãos Barry Fitzgerald e Arthur Shields.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

(Parênteses literários III: Jean-Louis Comolli II - Ford x De Mille)

“Ver e poder? Convencemo-nos com facilidade, nas salas escuras, que os desafios de mise en scène são duplos - estéticos e políticos; e que o nosso lugar de espectadores não está separado do de sujeitos políticos, que não deixamos de ser. Diz-se ‘representação’ tanto da mise en scène, quanto do sistema político. A história do cinema é (ou deveria ser), antes de mais nada, a história desses momentos em que ver e poder se relacionam em um balé catastrófico, sejam as tentativas dos poderes políticos de comandar as atividades cinematográficas, as violentas pressões exercidas pelos poderes econômicos para controlar os cineastas e conduzir os filmes como performances técnicas, as guerras ou batalhas que opuseram as companhias entre si, as independentes contra os trustes, os criadores contra os banqueiros e, em última instância, os cineastas uns contra os outros. Um exemplo. Estamos em 1947, em Hollywood, a ‘caça às bruxas’ macartista avança. Cecil B. De Mille reúne algumas centenas de cineastas para incitá-los a assinar uma declaração condenando qualquer contato passado, presente ou futuro com comunistas. A discussão se alonga. Por volta das duas horas da madrugada, conta Joseph L. Mankiewicz*, uma mão se ergue. ‘My name is John Ford.’ Ford era então o mais admirado de todos os hollywoodianos. Ele prossegue, se dirigindo a De Mille: ‘Eu te respeito, mas eu não gosto de você. Eu não gosto de nada que você defende, nem do que você representa.’ A moção não foi votada. Não posso me furtar a compreender esse face a face tanto em seu sentido político (Ford e De Mille, homens ‘de direita’, não têm a mesma concepção da América e da democracia), quanto em sua dimensão artística. Duas práticas da mise en scène que são também duas formas de pensar a vida em sociedade. De um lado, a tentação espetacular e o culto dos heróis; do outro, a crítica aos fanatismos e o amor pelos gestos simples, a começar pelo modo de filmar. Vejo as escolhas políticas e as escolhas estéticas se corresponderem. O cinema, arte política?”
 * Citado por Jean Douchet em sua análise filmada: Em busca de ‘The Searchers’, 52 minutos, produzida pela Scérén (Éducation Nationale, 2003).

Jean-Louis Comolli. Introdução - 1. A inocência perdida, in: Voir et Pouvoir. L’innocence perdue: cinéma, télévision, fiction, documentaire. Lagrasse: Verdier, 2004, p. 15-16 (minha tradução)

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Almôndegas (Meatballs, Ivan Reitman, Canadá, 1979)


Estreia cinematográfica de Bill Murray, “Meatballs” não é um grande filme, mas se beneficia bastante da presença do ator. Típico filme de sessão da tarde, em que Murray interpreta um instrutor de um summer camp (colônia de férias gringa), beirando um overacting que funciona muito bem para efeitos cômicos, dado o magnetismo e a cara de besta do ator. A sequência em que o personagem de Murray “encoraja” seus colegas do Camp North Star durante a olimpíada contra o Camp Mohawk, dizendo que não importa o desempenho da equipe, que mesmo se eles ganharem a olimpíada os rivais continuarão sendo mais bonitos e ricos, é hilária e compensa qualquer defeito do filme.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Ao Rufar dos Tambores (Drums Along the Mohawk, John Ford, Estados Unidos, 1939)



Mesmo não sendo uma obra-prima como os outros dois filmes realizados por Ford em 1939, este filme confirma a ótima fase do diretor, que praticamente repetiu o feito de 1935, realizando três filmes muito bons num mesmo ano. Henry Fonda e Claudette Colbert interpretam aqui recém-casados no meio do turbilhão da guerra estadunidense pela independência. Ainda em lua-de-mel, o casal parte pro interior, onde o personagem de Fonda se junta a uma milícia para combater os ingleses e os índios por eles cooptados. Ford utiliza o enredo como mais uma oportunidade para explorar o retrato de comunidades majoritariamente masculinas, como é de seu gosto, principalmente em seus filmes sobre o exército. Até em meio às sequências de batalha, Ford encontra espaço para o seu humor, como no momento em que a casa da viúva McKlennar é invadida por dois índios carregando tochas para queimar tudo. A viúva, resoluta a não sair da cama que dividiu por tantos anos com o falecido marido ou da casa que os dois construíram, obriga os índios a carregarem sua cama pra fora.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

The T.A.M.I. Show (Steve Binder, Estados Unidos, 1964)


Registro de um show realizado em 1964, reunindo grandes nomes do rock n’ roll e da black music, como Chuck Berry, The Miracles, Marvin Gaye, Beach Boys, Supremes e Rolling Stones, entre outros nomes menos conhecidos atualmente, este filme é um puta registro histórico. Mas quem rouba a cena mesmo é James Brown, que a maior parte do tempo parece estar em transe, sob a influência de algum psicotrópico. Brown entra no palco fazendo um proto-moonwalking, canta fora do microfone, se joga no chão, numa energia impressionante. Perto de sua performance, todas as outras parecem meio burocráticas, e até a ótima apresentação dos Rolling Stones, que vem logo em seguida, perde grande parte de sua força. Há outros bons momentos, como a canastrice de Gerry Marsden, do Gerry & The Pacemakers, mandando beijinhos e dando tchauzinho pra plateia majoritariamente feminina, as danças meio Charlie Brown / Scooby Doo, as tentativas desengonçadas de dança de Mike Love, do Beach Boys, as músicas corna-mansa de Lesley Gore (uma delas com a impagável letra “Maybe I know that he's been a cheatin' / Maybe I know that he's been untrue / But what can I do / Deep down inside he loves me / Though he may run around / Deep down inside he loves me / Some day he'll settle down”). O centro do filme, porém, é definitivamente James Brown. Fora de circulação por muito tempo, o filme foi lançado em DVD no início deste ano. Ainda não vi o bem falado “Uma Noite em 67”, documentário de Renato Terra e Ricardo Calil que esteve recentemente em cartaz, mas talvez os dois filmes façam um diálogo interessante.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

A Mocidade de Lincoln (Young Mr. Lincoln, John Ford, Estados Unidos, 1939)



Rodado no mesmo ano de “Stagecoach”, este filme, que conta uma história fictícia de Abraham Lincoln como advogado de início de carreira, confirma 1939 como outro grande ano na carreira de Ford (como já havia sido 1935). O personagem Lincoln, interpretado por Henry Fonda, é pretexto aqui para o exercício de uma obsessão de Ford: o herói que tem como obrigação desfazer uma injustiça (dois irmãos acusados de um assassinato que não cometeram) e reunir uma família, partindo sozinho no final. O discurso de Lincoln ao tentar impedir o linchamento dos irmãos é sensacional: “Costumamos perder a cabeça nessas horas. Fazemos coisas em grupo que nos envergonharíamos de fazer sozinhos”. Me lembrou um filme que Fritz Lang fez poucos anos antes, “Fury” (1936).  O humor de Ford aqui está bem presente, quase descambando para o besteirol nas piadinhas de Lincoln no tribunal. Ao interrogar como testemunha J. Palmer Cass, personagem de Ward Bond, que ao fim se revela o grande vilão do filme, Lincoln pergunta qual é seu primeiro nome (John). Então, Lincoln pergunta se alguém já o chamou de Jack e questiona o por quê de ele não ser conhecido como John P. Cass, se ele tem algum problema com seu nome ou algo a esconder. Cass responde que o nome é dele e ele escolhe como ser chamado, ao que Lincoln retruca: “Se você não se importa, te chamarei de Jack Cass” (Jackass), ao que todo o tribunal cai na risada.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

A Máscara do Anonimato (Masked and Anonymous, Larry Charles, Estados Unidos / Inglaterra, 2003)


Estreia cinematográfica de Larry Charles, que vinha de bela carreira na televisão, participando da equipe criativa das séries "Seinfeld" e "Curb Your Enthusiasm", e que realizaria posteriormente dois filmes engraçadíssimos com Sacha Baron Cohen (Borat, de 2006, e Brüno, de 2009). Este filme, porém, deixa um pouco a desejar, apesar das promessas do currículo do diretor, de um puta elenco (Bob Dylan, Jeff Bridges, Penélope Cruz, John Goodman, Luke Wilson, Cheech Marin, Giovanni Ribisi) e de um roteiro de Charles e de Dylan (sob pseudônimos). O enredo tem como pano de fundo um país em guerra civil. Goodman interpreta um empresário que organiza um show com propósitos falsamente beneficentes, supostamente para angariar fundos para a paz nacional, mas a intenção, na verdade, é desviar o dinheiro para o próprio bolso. Como não consegue grandes nomes como Paul McCartney ou Sting, o empresário contrata Jack Fate, músico que estava no ostracismo, interpretado por Dylan (apesar de ser um músico fictício, as músicas executadas no filme são do próprio Dylan). O filme peca pelo interesse desmesurado no exotismo da cenografia e da interpretação exagerada de grande parte dos atores, nos personagens caricatos, quase um freak show. Em meio a tanta afetação, a interpretação low-profile de Dylan é quase um alívio.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

No Tempo das Diligências (Stagecoach, John Ford, Estados Unidos, 1939)


Ford costuma ser muito criticado por seus detratores por ser supostamente direitista, reacionário, racista, um pouco por conta das próprias posições políticas ambíguas que tomava, um pouco pela persona autoritária que gostava de assumir, mas em grande parte pela percepção equivocada daqueles que assistem mal a seus filmes. Neste filme, é claríssimo o espírito libertário do autor, que simpatiza com os personagens párias, com os deserdados da sociedade: a prostituta, o bandido, o médico alcoólatra, em contraposição ao banqueiro, às senhoras respeitáveis e fuxiqueiras da “Liga da Lei e da Ordem”. Como já havia feito anteriormente nos filmes protagonizados por Will Rogers (“Doctor Bull”, “Judge Priest” e “Steamboat Round the Bend”), Ford contrapõe seus heróis à sociedade hipócrita e reacionária. A felicidade possível pertence àqueles que conseguem escapar da civilização sufocante (na fala de Doc Boone, quando o xerife deixa Ringo Kid escapar da prisão e fugir com Dallas para o seu rancho no fim do filme, “eles estão salvos das bênçãos da civilização”). Novamente Ford exercita seu talento cômico baseado em esquetes com diversos personagens, como aqueles belamente interpretados por Andy Devine, Thomas Mitchell e Donald Meek (este último já havia feito uma breve mas engraçadíssima participação em “The Whole Town’s Talking” como o cara que delata o personagem de Edward G. Robinson para a polícia e aparece em diversos momentos perguntando onde pode pegar sua recompensa). A entrada quase mítica em cena de John Wayne, em seu primeiro papel de destaque em Ford, é apontada por muitos como uma visão profética daquele que viria a ser a grande estrela dos faroestes (a câmera avança em zoom, enquanto Wayne, com um rifle, detém a diligência).

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Kobe Doin’ Work (Spike Lee, Estados Unidos, 2009)


Aparentemente inspirado em “Zidane, un Portrait du 21e Siècle”, que também focava em um esportista durante um jogo específico, este documentário sobre Kobe Bryant não tem a mesma força daquele. O modo de produção de cada um dos documentários tem grande repercussão sobre o resultado de cada um. Este aqui foi produzido para a TV. No entanto, é possível suspeitar que a personalidade de cada um dos retratados nos documentários também se reflita no produto final. Grande parte da força de “Zidane” vem de seu laconismo, com a inserção apenas em lettering de poucas falas de Zidane. Este “Kobe”, por sua vez, é verborrágico. Ouvimos o tempo inteiro a fala de Kobe, não só a fala diegética durante o jogo e intervalos, mas os comentários em off do jogador sobre o jogo, via de regra bem redundantes e pouco interessantes. Em determinado momento, essa verborragia é até ironizada. Em uma sequência de um intervalo de jogo, em que Kobe faz diversos comentários sobre a atuação de seus colegas de time, o jogador diz em off algo como: “É engraçado assistir à gravação, porque eu não sabia que falava tanto!” Há, no entanto, um ou outro bom momento nesses comentários de Kobe, quando, em uma sequência em que dá uma entrevista para a TV durante o intervalo, o jogador ironiza: “Esse momento e terrível. Acabamos de sair do jogo, todo suados, sem fôlego, e temos que fazer o maior esforço para dizer algo que faça minimamente sentido, para não parecermos completos idiotas”.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Vivendo na Corda Bamba (Blue Collar, Paul Schrader, Estados Unidos, 1978)


Belo filme de estreia de Schrader, diretor menos conhecido da geração hollywoodiana que despontou no fim dos anos 60 e principalmente nos 70 com nomes bem mais famosos como Scorsese, De Palma, Coppola, Spielberg e George Lucas. Schrader é talvez mais conhecido como roteirista de “Taxi Driver” (Martin Scorsese, 1976), e eu mesmo ainda não tinha visto nenhum filme seu. Apesar da tradução do título e da presença memorável de Richard Pryor como protagonista, no papel de um operário esquentado e desbocado, o filme não é uma comédia. Pryor, com sua dicção, suas caretas e seu gestual cômico peculiares, sempre dá aos filmes em que atua alguma comicidade, mas o tom geral aqui é de um drama político. O filme conta a história de três operários de uma montadora automobilística (outro dos protagonistas é Harvey Keitel), insatisfeitos com o trabalho e com o sindicato, que resolvem assaltar. Não encontrando muito dinheiro no cofre, mas descobrindo um esquema de agiotagem promovido pelo sindicato, os três resolvem arrumar mais dinheiro por meio de chantagem. Acabam se envolvendo num esquema meio sinistro, que termina na morte de Smokey, o terceiro protagonista (em uma sequência de assassinato bem bizarra, o personagem é secretamente trancado em uma sala de pintura automotiva para morrer sufocado), e na traição e rompimento dos outros dois amigos. Para melhorar ainda mais o filme, a música-tema, “Hard Workin’ Man”, é do ótimo Captain Beefheart. Pretendo em breve voltar à obra de Schrader, pois essa estreia é bem instigante.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

A Queridinha do Vovô (Wee Willie Winkie, John Ford, Estados Unidos, 1937)


Aparentemente, a fase menos inspirada de Ford, apontada por Tag Gallagher, durou muito pouco, já que o diretor realizou 3 filmes magníficos em 1935 (“The Whole Town’s Talking”, “The Informer” e “Steamboat Round the Bend”), 2 menos bons em 1936 (“The Prisoner of Shark Island” e “Mary Stuart”; não assisti “The Plough and the Stars”) e, logo em seguida, rodou este filme maravilhoso. Dois anos depois Ford realizaria as obras-primas “Stagecoach” e “Young Mr. Lincoln”. Aqui em “Wee Willie Winkie” Victor McLaglen, após protagonizar 5 filmes de Ford em papéis mais sérios, encarna pela primeira vez num filme do diretor, salvo engano, a persona cômica de destaque de 4 filmes posteriores (a trilogia da cavalaria e “The Quiet Man”). O ator funciona muito bem com Shirley Temple e as melhores sequências são aquelas em que os dois contracenam. Temple encarna aqui a heroína fordiana inocente que age para trazer paz ao mundo e a uma família em particular. Mais uma vez em Ford, a felicidade pertence aos ingênuos, e o filme se contamina da visão meio naïf da protagonista infantil, chegando perigosamente perto de uma visão bastante imperialista, mas bonita em sua lógica interna. A sequência em que a personagem de Temple canta “Auld Lang Syne” para “ninar” o personagem de McLaglen em seu leito de morte é memorável e de uma melancolia arrebatadora.


quinta-feira, 30 de setembro de 2010

(Parênteses literários II: Jean-Louis Comolli)


É preciso ressaltar: o filme, o cinema, a representação não estão fora do mundo, não estão diante do mundo, a olhá-lo de fora; eles próprios são pedaços do mundo, são o que do mundo torna-se olhar. Como não o perceber, aliás, já que uma parte cada vez maior de nossa relação com o mundo se dá por meio da circulação cada vez mais intensa de objetos audiovisuais cada vez mais fracos? Os audiovisus conduzem o mundo. Pior, eles o substituem, fabricam-no a seu modo. Daí, caro Gilles, caro Pierre, a importância de se fazer bons filmes. É o mundo que se enfeia ou se embeleza conforme o que se faz.

Jean-Louis Comolli. Carta de Marselha sobre a auto-mise en scène (carta a Pierre Baudry e Gilles Delavaud, 1994), in: Voir et Pouvoir. L’innocence perdue: cinéma, télévision, fiction, documentaire. Lagrasse: Verdier, 2004, p. 151 (minha tradução)

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

The Kentucky Fried Movie (John Landis, Estados Unidos, 1977)



O filme marca a estreia cinematográfica, no roteiro e como atores em pequenas pontas, da trinca Zucker, Abrahams & Zucker (ou ZAZ: David Zucker, Jim Abrahams e Jerry Zucker), responsável mais tarde, como trinca ou cada um individualmente, por clássicos como “Apertem os Cintos... O Piloto Sumiu” (1980), “Por Favor, Matem a Minha Mulher” (1984), “Corra que a Polícia Vem Aí” (1988) e “Top Gang” (1991). O segundo filme de Landis é um filme de esquetes, semelhante a “Amazon Women on the Moon” (co-dirigido por vários diretores como o próprio Landis e Joe Dante em 1987) e na linha de programas televisivos como Saturday Night Live ou os brasileiros TV Pirata e Casseta & Planeta. Como costuma acontecer em produções do tipo, o resultado é meio irregular e alguns esquetes são bem melhores que outros. Curiosamente, um dos segmentos mais fracos é um mais comprido, que se trata de uma paródia (especialidade da trinca ZAZ) de filmes do Bruce Lee. Quando o humor anárquico e politicamente incorreto de Landis funciona, porém, é bem poderoso, como costuma ser nos demais filmes do diretor.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Trás-os-Montes (António Reis e Margarida Cordeiro, Portugal, 1976)


Quanto mais vejo do pouco que ainda conheço do cinema português, mais se atiça minha curiosidade sobre a filmografia desse país. Não conhecia nada da obra de António Reis, mas a mostra “O Cinema de Pedro Costa”, que está acontecendo atualmente aqui em Brasília no CCBB, tem uma belíssima seção denominada “Carta Branca a Pedro Costa”, em que o próprio cineasta escolheu 4 filmes para serem exibidos (além deste e do mais manjado porém belíssimo “Gente da Sicília”, de Straub e Huillet, estão presentes “Beauty #2”, do Andy Warhol, e “Número Zero”, do Jean Eustache). Confiado na credencial de Costa e nas outras belas escolhas que fez para a mostra, fui assistir “Trás-os-Montes” com altíssima expectativa, e, de fato, este terminou por se revelar um belíssimo filme. Está aqui o mesmo olhar maravilhado diante do que se filma, o que me lembrou um pouco “Aquele Querido Mês de Agosto” ou os filmes do Apichatpong Weerasethakul ou ainda o próprio “Gente da Sicília”, apesar de cada um dos cineastas serem bastante diferentes. Reis e Cordeiro fazem aqui um registro pictórico-geográfico-poético da província de Trás-os-Montes, filmando indivíduos de diversas aldeias e vilarejos da região, sobretudo crianças, mulheres e velhos. Perpassa todo o filme o sentimento da ausência, em especial a dos chefes de família, como o pai da menina, emigrado para a Argentina e a quem a filha só conhece já com uns 12 anos, em um encontro rapidíssimo (a despedida dura bastante tempo, num plano longo e belíssimo, que lembra um pouco o plano de Claudette Colbert se despedindo de Henry Fonda, que parte com a tropa, em “Drums Along the Mohawk”) ou o marido emigrado para a Alemanha que envia uma carta à família. O olhar maravilhado se irmana ao olhar das crianças do início do filme, fascinadas com a amplidão dos espaços montanhosos, com o casarão cheio de relíquias. A quem se interessar pela obra de Reis, há um belo blog dedicado a sua obra, com uma puta fortuna crítica de todos os seus filmes, além de diversas entrevistas, fotos e textos do próprio cineasta.

"Trás-os-Montes" e "Drums Along the Mohawk"

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Aquele Querido Mês de Agosto (Miguel Gomes, Portugal / França, 2008)


O cinema português tem se mostrado ultimamente bem instigante. Este é um filme cuja chave é o olhar maravilhado diante do mundo e é esse olhar que dará o tom de toda sua duração. No início o filme aparenta não ter um objeto específico. Vemos diversas sequências de bandas de pequenos vilarejos da região de Arganil, em Portugal, tocando músicas populares, além de entrevistas com indivíduos desses vilarejos. Aos poucos, um enredo começa a tomar forma, com uma equipe cinematográfica (interpretada pela própria equipe do filme) que está rodando (ou está para rodar) um filme de ficção ali naquela região. Uma sequência chave, mais pro meio do filme, mostra uma discussão entre o produtor e o diretor em torno das filmagens. O produtor reclama que não se está seguindo o roteiro, e o diretor reclama da falta de recursos. Na segunda metade do filme vemos o filme de ficção que supostamente era para ser rodado desde o início. Ali vemos voltar diversos dos motivos (pessoas, falas, músicas, situações) que já havíamos visto na primeira parte, documental. Também nessa parte ficcional, a chave é o olhar maravilhado. Há uma paixão pelos ambientes retratados, pelas pessoas, pelas músicas bregas tocadas o tempo todo. Lendo um pouco sobre a produção do filme, fiquei sabendo que a equipe rodou a primeira parte em agosto de um ano e voltou em agosto do ano seguinte, para rodar a segunda parte. O simbolismo desse mês parece ser muito forte em Portugal, em particular nesses vilarejos. Agosto é o mês em que os jovens, que saem dos vilarejos para as cidades, voltam para visitar seus familiares. É também o mês em que, devido a esse retorno, abundam as festas nos vilarejos, retratadas em profusão. A sequência dos créditos finais é engraçadíssima. O diretor novamente começa uma discussão, dessa vez com o responsável pela captação de som, reclamando que os sons captados não correspondem ao que a câmera enquadra, ao que o técnico de som argumenta que os sons registrados são fruto de suas opções pessoais, que devem ser respeitadas. Diversos outros membros da equipe entram na discussão enquanto cada um deles é apresentado nominalmente nos créditos à medida que participam da discussão. Ao fim, mais uma surpresa: começa a tocar “Tudo Passará”, do Nelson Ned. Sensacional. Definitivamente, um filme a se rever.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

JCVD (Mabrouk El Mechri, Bélgica / Luxemburgo / França, 2008)


Dando continuidade ao meu mini-festival temático sobre documentários-retratos a respeito de esportistas, abri um parêntese com este filme que não é um documentário, nem é sobre um esportista. Achei, no entanto, que este filme de ficção em que Jean-Claude Van Damme faz o papel de si próprio como um ator em fim de carreira voltando à Bélgica, sua terra natal onde ainda é idolatrado, poderia fazer um diálogo interessante com “Tyson”, uma vez que tanto Mike Tyson quanto Van Damme são dois grandes ícones da luta do fim dos anos 80 e começo dos 90, ainda que o primeiro o seja na vida real e o segundo no universo da ficção. De fato, o diálogo entre os dois filmes se revelou bastante interessante. Enquanto em “Tyson”, o boxeador se expõe numa parcialidade bem cara-de-pau no relato sobre sua vida e carreira, aqui Van Damme se expõe numa auto-zoação impressionante. No filme, o ator está em uma disputa judicial pela guarda de sua filha, que vive nos Estados Unidos e se recusa a ficar com o pai por não querer mais ser alvo de piadas entre os colegas. Sobra também para Steven Seagal, que rouba um papel de Van Damme por prometer cortar seu infame rabo-de-cavalo. Em uma sequência sensacional, Van Damme está em meio a um assalto a banco em que é confundido pela polícia como o responsável pelo roubo e é repentinamente suspenso do espaço-tempo da ação para conversar diretamente com a câmera sobre sua desilusão com Hollywood. O filme tem algumas fraquezas, como o desejo de parecer moderninho demais (alguns tiques “pulp-fictionescos” como a repetição de sequências sob diferentes ângulos e o vai-e-vem temporal são bastante injustificáveis e poderiam ser descartados; a fotografia de um verde-prata meio “Ensaio sobre a Cegueira” é bem feia), mas o resultado final é um bocado divertido.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

(Parênteses literários: Ernesto Sabato)


Sabato, usando outras palavras para falar da queda do homem depois de comer o fruto proibido da árvore do conhecimento do bem e do mal, e do papel da arte na tentativa de reconexão com o paraíso perdido:

E naquele reduto solitário me punha a escrever contos. Agora percebo que escrevia cada vez que era infeliz, que me sentia só ou desconectado do mundo em que me coube nascer. E penso se não será sempre assim, que a arte do nosso tempo, essa arte tensa e escandalosa, nasça invariavelmente de nosso desajuste, de nossa ansiedade e nossa insatisfação. Uma espécie de tentativa de reconciliação com o universo dessa raça de criaturas frágeis, inquietas e angustiadas que são os seres humanos. Pois os animais não precisam dela: basta-lhes viver. Porque sua existência se desliza harmoniosamente com as necessidades atávicas. E para o pássaro bastam algumas sementinhas ou minhocas, uma árvore para construir seu ninho, grandes espaços para voar; e sua vida transcorre desde seu nascimento até sua morte em um venturoso ritmo que não é nunca perturbado nem pelo desespero metafísico, nem pela loucura. Já o homem, ao levantar-se sobre as duas patas traseiras e ao transformar em um machado a primeira pedra cortante, instituiu as bases de sua grandeza mas também as origens de sua angústia; porque com suas mãos e com os instrumentos feitos com suas mãos erigiria essa construção tão potente e estranha que se chama cultura e iniciaria assim sua grande desconexão, já que terá deixado de ser um simples animal mas não terá chegado a ser o deus que seu espírito lhe sugeria. Será esse ser dual e desgraçado que se move e vive entre a terra dos animais e o céu de seus deuses, que terá perdido o paraíso terrestre de sua inocência e não terá conquistado o paraíso celeste de sua redenção. Esse ser dolorido e doente do espírito que se perguntará, pela primeira vez, sobre o porquê de sua existência. E assim as mãos, e em seguida aquele machado, aquele fogo, e em seguida a ciência e a técnica terão ido cavando cada dia mais o abismo que o separa de sua raça originária e de sua felicidade zoológica. E a cidade será finalmente a última etapa de sua louca corrida, a expressão máxima de seu orgulho e a máxima forma de sua alienação. E então seres descontentes, um pouco cegos e um pouco como enlouquecidos, tentam recuperar às cegas aquela harmonia perdida com o mistério e o sangue, pintando ou escrevendo uma realidade diferente da que desgraçadamente os rodeia, uma realidade muitas vezes de aparência fantástica e demente, mas que, coisa curiosa, acaba sendo finalmente mais profunda e verdadeira que a cotidiana. E assim, sonhando um pouco por todos, esses seres frágeis conseguem erguer-se sobre sua desventura individual e transformam-se em intérpretes e até em salvadores (dolorosos) do destino coletivo.

Ernesto Sabato. Sobre Héroes y Tumbas (1961). Buenos Aires: La Nación, 2001, p. 471-472 (minha tradução)

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Mary Stuart, Rainha da Escócia (Mary of Scotland, John Ford, Estados Unidos, 1936)


Fruto de um breve período aparentemente menos inspirado de Ford (pelo menos é o que Tag Gallagher afirma em seu livro), este filme não tem a força da maioria de seus outros trabalhos, mas mesmo assim não deixa de ser um grande filme. Pouco se vê de sua assinatura aqui, talvez por conta dos conflitos que dizem ter existido entre Ford e Katharine Hepburn. Me parece que este filme acaba por ser mais um star vehicle da atriz que um filme autoral de Ford (mesmo que os filmes de bons autores hollywoodianos do período e de Ford em particular costume ser uma mistura das duas coisas). Chama atenção a atmosfera opressora do castelo em que vive a protagonista, reminiscência das fortes influências do expressionismo alemão na obra do diretor, principalmente nos filmes realizados entre 1928 e 1935 (“Four Sons”, “Hangman’s House”, “Arrowsmith”, “The Informer”). Destaca-se ainda, como sempre, a presença magnética de John Carradine em papel menor, como o braço direito da rainha.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Schlock (John Landis, Estados Unidos, 1973)


Primeiro filme de Landis, "Schlock” está mais próximo dos filmes trash da Troma (produtora que realizou filmes como a série “Toxic Avenger” e “Cannibal! The Musical”) que para os filmes posteriores do diretor. É a história de um macaco (o “elo perdido”) serial killer que deixa cascas de banana nas cenas dos crimes e se apaixona por uma garota, em referência a “King Kong”. No entanto, já estão aqui algumas características típicas de Landis, como o acúmulo de situações cômicas que praticamente prescindem de um enredo. Há situações hilárias e grotescas, como a da emissora de TV que promove um concurso para que os telespectadores adivinhem o número de pessoas mortas que corresponde aos pedaços de corpos esquartejados reunidos em sacos pela polícia. No momento em que o repórter anuncia o concurso, um braço em um dos sacos começa a mexer e alguém da equipe da TV dá um chute para ele parar. Landis faz o papel de Schlock, o macaco, em uma fantasia bem fuleira, tipo Monga, a Mulher-Gorila.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Estupro (José Mojica Marins, Brasil, 1979)


Filme menor de Mojica, este é um exemplo do quanto seus filmes que não são de terror tendem a ter muito menos força que os do gênero em que o diretor é especialista. Não há aqui a inventividade visual dos filmes com o Zé do Caixão, como a brilhante sequência do inferno de gelo em “Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver” (1967). Resta apenas um filme exploitation com alguns momentos de diversão (os personagens interpretados pelo próprio Mojica são sempre sensacionais em sua canastrice) e um enredo humorístico um pouco óbvio, mas que ainda assim proporciona certa diversão.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Independencia (Raya Martin, França / Filipinas / Alemanha / Holanda, 2009)


“Independencia” é parte de um impressionante projeto de Raya Martin que pretende documentar a história das Filipinas, particularmente os três períodos de dominação / colonização pelos quais o país passou. O anterior “Um Pequeno Filme Sobre o Índio Nacional - ou a Prolongada Agonia dos Filipinos” (“Maicling Pelicula Nañg Ysañg Indio Nacional - O Ang Mahabang Kalungkutan ng Katagalugan”, 2005) tratava da colonização espanhola e da Revolução Filipina de 1896. Para tanto, Martin utilizava um instrumental do cinema mudo, como se almejasse recriar um filme que tivesse sido realizado naquele período. O resultado é bem instigante, para além da mera proeza ou ousadia de linguagem. Neste “Independencia", o diretor trata da dominação estadunidense do começo do século XX até 1946. Semelhantemente ao filme anterior, Martin utiliza elementos da linguagem cinematográfica hollywoodiana do início do cinema sonoro dos anos 30 / 40: filmagem em estúdio, cenários pintados, forte maquiagem, iluminação artificial, som dublado. O resultado pode não ser tão impactante quanto o filme anterior (impacto que se dá, em parte, pela novidade da proposta, amenizada aqui depois de já visto o primeiro), mas este é também um filme muito bom. A artificialidade do dispositivo cria um ambiente irreal, quase onírico, que se choca com a brutalidade do que vivem os personagens. O diretor afirmou em uma entrevista concedida à cinema-scope que o cinema filipino carece de um arquivo, pois grande parte dos filmes realizados no país antes da II Guerra Mundial foi destruído, restando apenas quatro filmes muito mal conservados. Parece, então, que parte do propósito de Martin é reconstruir hipoteticamente parte dessa filmografia. O diretor ainda pretende realizar um terceiro filme, dessa vez sobre a ocupação japonesa durante a II Guerra Mundial.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Tyson (James Toback, Estados Unidos, 2008)


Ao contrário do que faz Kusturica no filme sobre Maradona, aqui Toback dá total espaço para a fabulação de Tyson. A vida do boxeador é contada toda a partir de seu prisma, num formato de “cabeça falante” que aqui funciona surpreendentemente bem, uma vez que a história que Mike Tyson constrói em torno de si é fantástica. No seu modo de contá-la, a história é descaradamente parcial, não há outros lados, e Tyson se pinta grande parte do tempo como vítima de si próprio, de sua juventude e despreparo para lidar com a fama. Sua voz quase fanha e sua língua presa contrastam com a dureza de seu rosto tatuado e nos trazem para mais perto da pessoa do boxeador, gerando certa empatia. Complementam o filme algumas inserções de material de arquivo de TV, que funcionam muito bem, principalmente os abundantes registros das lutas.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Maradona by Kusturica (Emir Kusturica, Espanha / França, 2008)


A sequência de abertura do filme é sintomática. Emir Kusturica com uma guitarra, num show de sua banda em Buenos Aires. Alguém diz ao microfone: "Senhoras e senhores, na guitarra, señor Diego Armando Maradona do mundo do cinema!” Durante todo o resto do documentário, irrita a clara preocupação de Kusturica em falar mais de si mesmo, dos seus filmes, de sua genialidade, do que de Maradona, que aqui parece apenas um pretexto. Chega a ser deprimente o esforço do cineasta em se equiparar à genialidade do jogador em campo. Em alguns momentos raros, em que o diretor dá espaço a Maradona para que ele faça o que melhor sabe fazer (encenar, atuar), o filme tem bastante força. Um exemplo é a sequência em que Maradona sobe ao palco de um bar para cantar “La Mano de Dios”: “Y todo el pueblo cantó / Maradó, Maradó / Nació la mano de Dios / Maradó, Maradó”. Infelizmente são pouquíssimos momentos em que isso acontece, e a sensação é a de que Maradona precisava de um cineasta que não se tivesse em tão alta conta para dirigir um filme digno do que o jogador representa não só para o futebol, como para a cultura mundial. Mal comparando, é interessante pensar em como um cineasta péssimo como Darren Aronofsky conseguiu fazer um filme maravilhoso como “O Lutador” (The Wrestler, 2008) ao entregá-lo todo a Mickey Rourke e se reduzir à sua insignificância. Outra coisa que chama atenção no filme de Kusturica é a inacreditável falta de espaço para o futebol de Maradona. Há apenas algumas breves inserções de “melhores momentos”, com alguns dos gols mais bonitos de sua carreira, e só.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Zidane: um Retrato do Século XXI (Zidane, un Portrait du 21e Siècle, Douglas Gordon et Philippe Parreno, França / Islândia, 2006)


Dando um intervalo na saudável overdose de Ford que tenho tido ultimamente e ainda na ressaca da Copa do Mundo, resolvi ver alguns documentários-retratos sobre esportistas. Comecei por este curioso filme sobre Zidane, que não segue o padrão do documentário baseado em entrevistas. É simplesmente o registro da última partida de Zidane pelo Real Madrid, contra o Villarreal, antes de sua aposentadoria em 2006. Mas o registro do jogo também não é tradicional, optando por focar o tempo inteiro em Zidane. O que interessa, então, não é o jogo em si (às vezes é até difícil entender o que está acontecendo, e eu terminei o filme sem saber qual tinha sido o resultado da partida). O que importa é Zidane, seus tiques, suas expressões, seu corpo. O jogador é famoso por ser uma figura enigmática, e a estratégia adotada pelos realizadores ressalta ainda mais esse aspecto. O close constante em seu rosto revela que ele mantém uma expressão fechada grande parte do jogo, não comemorando ou sorrindo quando seu time marca gols. A bela trilha sonora do Mogwai ajuda ainda mais a criar a atmosfera enigmática do filme. Zidane participa efetivamente em poucos lances da partida, mas seus passes são invariavelmente decisivos. No fim, como boa amostra da figura que é Zidane, ele é expulso por se envolver numa briga a poucos minutos do término do jogo.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

John Ford 1917-1935 - Alguns destaques (parte 2/2)


Continuando:

6) Carne (Flesh, Estados Unidos, 1932)

O talento cômico de Ford é bastante evidente aqui, ao fazer um filme hilário a partir de um tema trágico. Wallace Beery faz o papel do tolo ingênuo enganado pela mulher que ama. No espírito cristão do “Bem aventurados os pobres de espírito”, Ford costuma conceder a felicidade aos ingênuos, como é o caso aqui. Ainda que o final nos pareça bem triste, não é assim que o vê o personagem de Beery.

7) Doutor Bull (Doctor Bull, Estados Unidos, 1933)

Primeiro dos 3 filmes realizados em parceria com Will Rogers, que aqui encarna o herói inadaptado a uma sociedade hipócrita, dominada pela fofoca.

8) Peregrinação (Pilgrimage, Estados Unidos, 1933)

Este filme guarda várias semelhanças com “Four Sons”. Novamente, a guerra destrói uma família. Novamente, a protagonista é uma mãe. Ford faz aqui um trabalho impressionante, de construir uma protagonista bastante odiável, mas com quem não conseguimos deixar de ter certa empatia.

9) Juiz Priest (Judge Priest, Estados Unidos, 1934)

Will Rogers encarna aqui mais um herói fordiano cujo papel primordial é reunir uma família. Destaque para os papéis cômicos de Stepin Fetchit e Francis Ford, irmão do diretor e grande inspiração no início de sua carreira.
 

10) O Delator (The Informer, Estados Unidos, 1935)

O ano de 1935 foi especialmente feliz para Ford, que realizou 3 belíssimos filmes em sequência. Aqui a influência do expressionismo alemão se faz notar de forma particularmente forte. É um filme pesado visualmente, de atmosfera carregada. O catolicismo do diretor está presente no binômio culpa / arrependimento com o qual o personagem de Victor McLaglen atravessa o filme. A sequência do julgamento realizado pelos rebeldes irlandeses lembra um pouco o julgamento do personagem de Peter Lorre realizado pelos criminosos em “M, o Vampiro de Dusseldorf” (Fritz Lang, 1931).

11) O Homem que Nunca Pecou (The Whole Town's Talking, Estados Unidos, 1935)

Interessante exercício de Ford no gênero “o homem errado” imortalizado por Hitchcock. Edward G. Robinson está magnífico no papel duplo do funcionário exemplar falsamente acusado e do assassino com o qual a polícia o confunde. Da série “Tradutores Muito Loucos e seus Títulos do Barulho”, é engraçado notar a obsessão com a palavra “pecado” de muitos títulos traduzidos de filmes clássicos, como “O Pecado de Cluny Brown” (“Cluny Brown”, Ernst Lubitsch, 1946), “Só a Mulher Peca” (“Clash by Night”, Fritz Lang, 1952), “Adorável Pecadora” (“Let’s Make Love”, George Cukor, 1960) e “Quando Duas Mulheres Pecam” (“Persona”, Ingmar Bergman, 1966).
 

12) Nas Águas do Rio (Steamboat Round the Bend, Estados Unidos, 1935)

Último filme da feliz parceria com Will Rogers. Grande parte do elenco de “Judge Priest” é repetido aqui, com destaque novamente para os papéis cômicos de Stepin Fetchit e Francis Ford. Este último ganha papel mais relevante para a trama e com mais tempo de participação, coisa rara nos outros filmes de que participa, em que costuma ter aparição episódica, ainda que normalmente com grandes efeitos cômicos. Vemos aqui e nos outros dois filmes com Rogers os primórdios dos retratos de comunidades que serão desenvolvidos belissimamente por Ford em filmes posteriores como “How Green Was My Valley”, “They Were Expendable”, a trilogia da cavalaria e “The Quiet Man”.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

John Ford 1917-1935 - Alguns destaques (parte 1/2)


Acabei de ler recentemente um livro maravilhoso sobre Ford, escrito pelo Tag Gallagher (“John Ford: The Man and His Films”), disponível em pdf no site do próprio autor. Recomendo a leitura a todos que se interessem pela filmografia do diretor. O livro traz algumas notas biográficas, mas centra-se na análise dos filmes, discorrendo sobre praticamente todos eles, a partir de 1928. Dizem que o livro do Peter Bogdanovich, “John Ford”, também é muito bom.

Seguem alguns destaques do que tenho visto dos primeiros filmes da carreira do diretor, no período de 1917 a 1935 (vou dividir em dois posts para não ficar muito gigantesco).

1) Straight Shooting (Estados Unidos, 1917)

Ao que parece, este é o filme mais antigo de Ford com cópia ainda existente e seu primeiro longa-metragem. “Straight Shooting” já valeria pelo documento histórico que é, pois é uma rara amostra dos 25 filmes que Ford fez entre 1917 e 1921 com Harry Carey como protagonista, interpretando quase sempre o mesmo personagem, Cheyenne Harry. Quase todos os filmes dessa época se perderam, restando hoje apenas, além deste, “Bucking Broadway” e “Hell Bent”, mais pedaços de “The Scarlet Drop” e de “A Gun Fightin’ Gentleman”. Aqui já se nota a figura do herói fordiano solitário, que chega para desfazer uma injustiça, reunir uma família. Diz a lenda que a versão original terminava com Cheyenne Harry sozinho, devolvendo a mocinha Molly para o mocinho Sam, algo tipicamente fordiano, mas a versão disponível hoje, supostamente reeditada pela Universal, termina com um final feliz, em que Harry fica com Molly.

2) O Cavalo de Ferro (The Iron Horse, Estados Unidos, 1924)

Grande épico sobre a construção de uma nação. Chama a atenção a visão ao mesmo tempo grandiosa e pessimista de Ford, que pinta o processo com traição, ganância inescrupulosa e muitas mortes (é dado especial destaque às várias sequências de enterros durante o filme). Aqui o talento de Ford para pintar grandes painéis sobre a história dos Estados Unidos já está bem amadurecido.

3) Os Três Homens Maus (3 Bad Men, Estados Unidos, 1926)

Aqui o típico herói fordiano é dividido em 3 “bandidos bons”, que salvam a vida da mocinha e se sacrificam para reunir uma família. Fica clara a simpatia de Ford pelos deserdados da sociedade, uma constante em sua obra.

4) Quatro Filhos (Four Sons, Estados Unidos, 1928)

Espécie de antecipação ao maravilhoso “Pilgrimage”, de 1933, aqui também temos uma mãe como figura central. O filme retrata uma família destruída pela I Guerra Mundial. Três dos filhos lutam pela Alemanha, enquanto o quarto luta do lado oposto, pelos Estados Unidos. Ford, que às vezes parece um entusiasta do exército, faz aqui um retrato desolador da guerra. Neste filme começa a se tornar evidente uma forte influência do expressionismo alemão na composição visual, fruto da admiração de Ford por Murnau, que marcará boa parte de seus filmes, pelo menos até 1935.

5) Justiça do Amor (Hangman's House, Estados Unidos, 1928)

É estranho ver Victor McLaglen em um papel não cômico, depois de me acostumar com ele nos filmes de Ford dos anos 40 e 50, como a trilogia da cavalaria (“Fort Apache”, “She Wore a Yellow Ribbon”, “Rio Grande”) e “The Quiet Man”, em que faz papéis engraçadíssimos. Antes disso, porém, ele bancava o protagonista galã nos filmes do diretor. Aqui ele faz o papel do herói fordiano que novamente chega para desfazer uma injustiça (o pai da mocinha quer casá-la com um malfeitor rico, apesar de ela ter planos de se casar com outro). Como bom herói fordiano, o personagem de McLaglen se apaixona pela mocinha, mas cumpre seu papel de juntar o casal e ir embora sozinho no fim.