quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

(Parênteses literários V: Euclides da Cunha e John Ford II: o falseamento da História oficial)


Mais um diálogo anacrônico entre Euclides da Cunha e Ford, sobre a maneira como a História oficial é feita de meias-verdades. Aqui, Euclides discorre sobre a invasão de Canudos pelas tropas do Estado e a degola covarde dos rebeldes capturados:
Um grito de protesto

Ademais, não havia temer-se o juízo tremendo do futuro.

A História não iria até ali.

Afeiçoara-se a ver a fisionomia temerosa dos povos na ruinaria majestosa das cidades vastas, na imponência soberana dos coliseus ciclópicos, nas gloriosas chacinas das batalhas clássicas e na selvatiqueza épica das grandes invasões. Nada tinha que ver naquele matadouro.

O sertão é o homízio. Quem lhe rompe as trilhas, ao divisar à beira da estrada a cruz sobre a cova do assassinado, não indaga do crime. Tira o chapéu, e passa.

E lá não chegaria, certo, a correção dos poderes constituídos. O atentado era público. Conhecia-o, em Monte Santo, o principal representante do governo, e silenciara. Coonestara-o com a indiferença culposa. Desse modo a consciência da impunidade, do mesmo passo fortalecida pelo anonimato da culpa e pela cumplicidade tácita dos únicos que podiam reprimi-la, amalgamou-se a todos os rancores acumulados, e arrojou, armada até aos dentes, em cima da mísera sociedade sertaneja, a multidão criminosa e paga para matar.

Canudos tinha muito apropriadamente, em roda, uma cercadura de montanhas. Era um parêntese; era um hiato; era um vácuo. Não existia. Transposto aquele cordão de serras, ninguém mais pecava.

Realizava-se um recuo prodigioso no tempo; um resvalar estonteador por alguns séculos abaixo.

Descidas as vertentes, em que se entalava aquela furna enorme, podia representar-se lá dentro, obscuramente, um drama sanguinolento da idade das cavernas. O cenário era sugestivo. Os atores, de um e de outro lado, negros, caboclos, brancos e amarelos, traziam, intacta, nas faces, a caracterização indelével e multiforme das raças – e só podiam unificar-se sobre a base comum dos instintos inferiores e maus.

A animalidade primitiva, lentamente expungida pela civilização, ressurgiu, inteiriça. Desforrava-se afinal. Encontrou nas mãos, ao invés do machado de diorito e do arpão de osso, a espada e a carabina. Mas a faca relembrava-lhe melhor o antigo punhal de sílex lascado. Vibrou-a. Nada tinha a temer. Nem mesmo o juízo remoto do futuro.

Mas que entre os deslumbramentos do futuro caia, implacável e revolta; sem altitude, porque a deprime o assunto; brutalmente violenta, porque é um grito de protesto; sombria, porque reflete uma nódoa – esta página sem brilhos...”
Euclides da Cunha. Os Sertões (1902). Rio de Janeiro: Record, 2010, p. 547-548.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Procedimento Operacional Padrão (Standard Operating Procedure, Errol Morris, Estados Unidos, 2008)

Documentário sobre os episódios de tortura e abuso cometidos contra os prisioneiros iraquianos de Abu Ghraib, este filme tem depoimentos impressionantes dos militares envolvidos nos episódios (a mais famosa dentre eles, Lynndie England, tem papel de destaque). Por um lado, é flagrante uma certa cara de pau em considerar os eventos como algo banal – o famigerado “estava apenas cumprindo ordens”. Um dos entrevistados chega a dizer algo como “não estávamos machucando ninguém, não matamos ninguém, estávamos apenas humilhando os prisioneiros para facilitar os interrogatórios”. Por outro lado, uma constante nos depoimentos é o discurso de que os militares condenados serviram como bodes expiatórios, uma vez que militares de mais altas patentes não foram punidos, apesar de terem sido no mínimo coniventes com a situação. Sabrina, uma das envolvidas, condenada a 6 meses de prisão, se coloca como heroína incompreendida: tirava fotos para registrar o absurdo que presenciava, para servir de prova mais tarde. Comentando uma foto em que aparece sorrindo e fazendo sinal de positivo ao lado do corpo de um iraquiano morto sob tortura, ela diz: “eu sei que minha expressão e meu gesto me condenam, mas eu nunca sei o que fazer com as mãos quando sou fotografada; além disso, eu precisava sorrir para aparentar naturalidade diante de tudo o que acontecia”. Morris aproveita as entrevistas dos envolvidos para questionar a verdade da imagem: um dos entrevistados diz algo como “a fotografia é apenas o registro de uma fração de segundo; não mostra o antes e o depois e, portanto, dá margem a interpretações que não condizem com a realidade”. Outra constante no discurso dos entrevistados é a de que o grande erro deles foi ter fotografado ou se deixado fotografar durante os abusos. Caso não houvesse registro, não ocorreria nenhuma punição, mesmo que o exército soubesse do ocorrido. Mais uma vez, questão de imagem: a punição foi necessária unicamente porque a imagem do exército e dos Estados Unidos foi abalada.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Por Trás das Câmeras (For Your Consideration, Christopher Guest, Estados Unidos, 2006)

Dirigido por Christopher Guest, roteirista e ator principal do célebre mockumentary “This Is Spinal Tap” (Rob Reiner, 1984), este filme tira um belo sarro da indústria hollywoodiana e da temporada pré-Oscars. A performance over the top de Catherine O’Hara é hilária e os personagens estereotipados de Harry Shearer (também protagonista de “Spinal Tap”), Parker Posey, Christopher Guest, John Michael Higgins e Eugene Levy são sensacionais. Estão presentes em papéis menores dois atores que fazem referência às versões britânica e estadunidense da série “The Office”, tributárias mais célebres hoje, talvez, do gênero mockumentary celebrizado por Guest e companhia: Ricky Gervais, criador e ator principal da versão original britânica, e John Krasinski, ator da versão estadunidense. Fica a curiosidade e a vontade de acompanhar melhor a carreira pouco comentada, mas certamente bastante talentosa de Guest (ainda não vi nem o obrigatório “Spinal Tap”).

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

(Parênteses literários IV: Euclides da Cunha, John Ford, A Conquista da Honra e o Morro do Alemão)

Apu Gomes/Folhapress

Estou lendo atualmente “Os Sertões”, do Euclides da Cunha, e tem se estabelecido entre este livro e a filmografia de Ford um diálogo interessante. Assim como Ford, Euclides também critica a construção mentirosa dos fatos oficiais e das lendas históricas em torno dos heróis da pátria. E é impressionante que, mesmo tendo sido alertados tantas vezes da artificialidade de relatos desse tipo, continuemos a ser engambelados hoje (vide a narrativa heroica construída há pouco pela mídia quando as forças do Estado invadiram o Morro do Alemão e plantaram lá uma bandeira do Brasil; alguém se lembrou de algum filme recente do Clint Eastwood?)
O cabo Roque
Nessas incertezas, a verdade aparecia, às vezes, sob uma forma heróica. A morte trágica de Salomão da Rocha foi uma satisfação ao amor-próprio nacional. Aditou-se-lhe depois, mais emocionante, a lenda do cabo Roque, abalando comovedoramente a alma popular. Um soldado humilde, transfigurado por um raro lance de coragem, marcara a peripécia culminante da peleja. Ordenança de Moreira César, quando desbaratara-se a tropa, e o cadáver daquele ficara em abandono à margem do caminho, o lutador leal permanecera a seu lado, guardando a relíquia veneranda abandonada por um exército. De joelhos, junto ao corpo do comandante, batera-se até ao último cartucho, tombando, afinal, sacrificando-se por um morto...

E a cena maravilhosa, fortemente colorida pela imaginação popular, fez-se quase uma compensação à enormidade do revés. Abriram-se subscrições patrióticas; planearam-se homenagens cívicas e solenes; e, num coro triunfal de artigos vibrantes e odes ferventes, o soldado obscuro transcendia à história quando – vítima da desgraça de não ter morrido –, trocando a imortalidade pela vida, apareceu com os últimos retardatários supérstites em Queimadas.

A este desapontamento aditaram-se outros, à medida que a situação se esclarecia. A pouco e pouco se reduzia por um lado, agravando-se por outro, a catástrofe. Os trezentos e tantos mortos das informações oficiais ressurgiam. Três dias depois do recontro, três dias apenas, já se achava em Queimadas, a duzentos quilômetros de Canudos, grande parte da expedição. Uma semana depois, verificava-se, ali, a existência de 74 oficiais. Duas semanas mais tarde, no dia 19 de março, lá estavam – salvos – 1.081 combatentes.

Vimos quantos entraram em ação. Não subtraiamos. Deixemos aí, registrados, estes algarismos inexoráveis.

Eles não diminuíram, com a sua significação singularmente negativa, o fervor das adesões entusiásticas”.

Euclides da Cunha. Os Sertões (1902). Rio de Janeiro: Record, 2010, p. 352-353.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Domínio de Bárbaros (The Fugitive, John Ford & Emilio Fernández, Estados Unidos / México, 1947)

Rodado no México, este filme tem como pano de fundo um país latino-americano fictício, dominado por um regime ditatorial que aboliu a religião, executando todos os padres. Aparentemente o único padre remanescente, o personagem de Fonda é o típico personagem fordiano que se sacrifica em prol da realização de seu dever, aqui o de pregar a palavra divina à população de seu vilarejo. O filme é uma alegoria da história de Jesus: Fonda é, naturalmente, Jesus, andando em sua mula e se sacrificando pelo povo, Dolores del Rio, a prostituta santa, é Maria Madalena, J. Carrol Naish, em sua sede pela recompensa por entregar o padre à polícia, é Judas, e Ward Bond, o bom bandido, é o ladrão arrependido crucificado ao lado de Jesus. O cineasta mexicano Emilio Fernández, além de produtor, é tido como co-diretor do filme, apesar de não ser creditado. A sequência de execução do padre é magnífica: o personagem sobe as escadas do pátio da prisão em contraplongé, ascendendo simbolicamente ao céu, enquanto o tenente assiste escondido de sua sala, envolto em fortes sombras. Assim que o padre é morto, o tenente, árduo combatente da religião como superstição, faz o sinal da cruz.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Mr. Mike's Mondo Video (Michael O'Donoghue, Estados Unidos, 1979)


Escrito e dirigido pelo ex-colaborador da revista de humor National Lampoon e primeiro head-writer (traduzível por algo como roteirista-chefe) do programa televisivo Saturday Night Live, este é um filme de esquetes, nos moldes deThe Kentucky Fried Movie”, parodiando o famigerado documentário exploitationMondo Cane” (1962). O resultado aqui também é, como de costume nos filmes do gênero, bastante irregular e alguns dos esquetes são bem sem graça (um deles é francamente inexplicável: um cara numa fantasia de vampiro cantando, por 4 minutos, em plano fixo e registro tosco de vídeo doméstico, uma música francesa com voz de cantora lírica; bizarro). Destacam-se as participações de Dan Aykroyd e Bill Murray, este último em aparição brevíssima. Há algumas pérolas, como a sequência em que soldados com a máscara de Mao Tse-Tung invadem a casa de uma família gringa pra destruir seus eletrodomésticos, rádio, televisão, jornais e revistas, ou o segmento do restaurante francês “No Americains”, que tem como especialidade tratar mal os clientes estadunidenses. Inicialmente planejado para ser exibido na televisão como um especial do Saturday Night Live, o filme foi rejeitado pela NBC por conta da tosqueira e acabou sendo lançado no cinema. O filme tem ainda a famosa interpretação de Sid Vicious para “My Way”, utilizada no ano seguinte em “The Great Rock n’ Roll Swindle” (Julien Temple, 1980), mas aqui, pelo menos na cópia a que assisti, a sequência está toda picotada, sem nada da parte cantada da música, ao que parece por problemas de direitos autorais.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

A Ilha dos Mortos (Survival of the Dead, George A. Romero, Estados Unidos / Canadá, 2009)


Mais para spinoff que continuação propriamente dita de “Diary of the Dead”, este filme retoma os personagens da Guarda Nacional com que os protagonistas daquele filme se encontram em dado momento. Este talvez seja o mais fraco dos seis filmes de Romero da série dos mortos-vivos, o que não significa nem de longe dizer que seja um mau filme. No enredo, os soldados da Guarda Nacional se refugiam dos zumbis em uma ilha na qual vivem dois patriarcas malucos de famílias rivais, que travam uma batalha a respeito da forma de lidar com os mortos-vivos. O primeiro deles crê que os zumbis devam ser exterminados a qualquer custo, mesmo se for preciso matar quem quer se oponha a isso, como os familiares das pessoas transformadas em zumbis. Enquanto isso, o segundo é um fanático religioso que se crê numa missão divina para curar os zumbis e trazê-los de volta à vida. Para tanto, mantém-nos acorrentados enquanto não se descobre a cura. É interessante como aqui o perigo não são os zumbis, relativamente inofensivos para os personagens que têm grande perícia no uso das armas de fogo, mas os vivos. O filme é, ao fim, uma alegoria da falta de sentido da guerra. A sequência final, em que os dois patriarcas, já mortos e transformados em zumbis, continuam a guerra sem fim, enquanto o personagem do sargento discorre sobre a falta de sentido das guerras, que consistem apenas em indivíduos defendendo bandeiras quaisquer, a razão não estando em nenhum dos lados, é sensacional. A analogia mais direta é com a Guerra do Iraque, que ainda acontecia enquanto o filme era realizado, mas pode ser aplicada a virtualmente qualquer guerra. Romero planeja ainda realizar pelo menos mais dois filmes da série, ambos também spinoffs de “Diary”. O primeiro teria como protagonistas o grupo de negros que montam um imenso armazém de suprimentos a partir do material que roubam em meio ao caos das cidades. O segundo teria como protagonista a garota texana, que foge da mansão em que o grupo se abriga no fim do filme. Longa vida à ex-trilogia dos mortos-vivos de Romero!

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Diário dos Mortos (Diary of the Dead, George A. Romero, Estados Unidos, 2007)


Interessante o diálogo que este filme estabelece com “Redacted”. Como ocorria com o soldado aspirante a cineasta daquele filme, aqui também o grupo de estudantes de cinema que faz o registro dos ataques de zumbis se depara com uma questão ética: como documentar o horror para além da curiosidade mórbida, do voyeurismo, em suma, sem se tornar conivente com ele? Irrita o quanto Jason, diretor do fracassado filme de terror de conclusão de curso que vira um documentário sobre os zumbis a partir dos ataques, insiste em não largar a câmera para não perder qualquer acontecimento, a ponto de colocar em risco a própria vida e, por fim, ser morto por um dos zumbis. No entanto, nossa relação com o personagem é ambígua, pois, ao mesmo tempo que antipatizamos com ele por conta dessa cabeça dura, sem ela não haveria filme. Outro diálogo que se estabelece entre os filmes de Romero e De Palma se refere às relações entre a grande mídia e a web 2.0 no trato com a informação e a verdade. Aqui a crítica aos noticiários das grandes corporações é mais explícita, limitados que são pelos compromissos empresariais. Apesar do discurso da namorada de Jason, responsável pelo corte final do material registrado pelo namorado, sobre blogs, videologs e redes sociais formarem um amontoado caótico de vozes, que mais encobrem que revelam a verdade, são esses meios de comunicação os responsáveis por retratar mais fielmente o que se passa com os ataques de zumbis.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Guerra sem Cortes (Redacted, Brian De Palma, Estados Unidos / Canadá, 2007)


Estou começando outro mini-festival, de filmes sobre a Guerra do Iraque, com este filme do Brian De Palma. Mesmo tendo lido alguma coisa sobre ele antes, não estava preparado para a porrada que é assisti-lo. Para retratar a presença de uma tropa estadunidense em território iraquiano, e em particular o estupro de uma garota iraquiana por dois soldados, De Palma multiplica os registros audiovisuais, como quem afirma que um único registro, uma única abordagem estético-narrativa não pode dar conta da realidade. Assim, vemos fragmentos de um diário audiovisual de um soldado aspirante a cineasta, fragmentos de um documentário francês sobre os checkpoints, registros de câmeras de segurança, webcams, blogs, noticiários televisivos. De Palma “reúne” todo esse material para fazer um retrato possível de uma guerra abjeta, estúpida, praticamente num filme de horror focalizando a estupidez e a brutalidade humana.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Idiocracy (Mike Judge, Estados Unidos, 2006)


Dirigido por Mike Judge, criador de Beavis and Butt-Head, este filme tem como enredo o clássico (ou batido) sujeito-cobaia-de-um-experimento-militar-é-congelado-e-acorda-500-anos-depois. Aqui a sociedade de 2505 é totalmente povoada de Beavis e Butt-Heads, pessoas completamente idiotas. A piada se esgota rapidamente e a presença dos bons Luke Wilson e Maya Rudolph como o casal protagonista não salva o filme, que é bem trash, no pior sentido.