quinta-feira, 30 de setembro de 2010

(Parênteses literários II: Jean-Louis Comolli)


É preciso ressaltar: o filme, o cinema, a representação não estão fora do mundo, não estão diante do mundo, a olhá-lo de fora; eles próprios são pedaços do mundo, são o que do mundo torna-se olhar. Como não o perceber, aliás, já que uma parte cada vez maior de nossa relação com o mundo se dá por meio da circulação cada vez mais intensa de objetos audiovisuais cada vez mais fracos? Os audiovisus conduzem o mundo. Pior, eles o substituem, fabricam-no a seu modo. Daí, caro Gilles, caro Pierre, a importância de se fazer bons filmes. É o mundo que se enfeia ou se embeleza conforme o que se faz.

Jean-Louis Comolli. Carta de Marselha sobre a auto-mise en scène (carta a Pierre Baudry e Gilles Delavaud, 1994), in: Voir et Pouvoir. L’innocence perdue: cinéma, télévision, fiction, documentaire. Lagrasse: Verdier, 2004, p. 151 (minha tradução)

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

The Kentucky Fried Movie (John Landis, Estados Unidos, 1977)



O filme marca a estreia cinematográfica, no roteiro e como atores em pequenas pontas, da trinca Zucker, Abrahams & Zucker (ou ZAZ: David Zucker, Jim Abrahams e Jerry Zucker), responsável mais tarde, como trinca ou cada um individualmente, por clássicos como “Apertem os Cintos... O Piloto Sumiu” (1980), “Por Favor, Matem a Minha Mulher” (1984), “Corra que a Polícia Vem Aí” (1988) e “Top Gang” (1991). O segundo filme de Landis é um filme de esquetes, semelhante a “Amazon Women on the Moon” (co-dirigido por vários diretores como o próprio Landis e Joe Dante em 1987) e na linha de programas televisivos como Saturday Night Live ou os brasileiros TV Pirata e Casseta & Planeta. Como costuma acontecer em produções do tipo, o resultado é meio irregular e alguns esquetes são bem melhores que outros. Curiosamente, um dos segmentos mais fracos é um mais comprido, que se trata de uma paródia (especialidade da trinca ZAZ) de filmes do Bruce Lee. Quando o humor anárquico e politicamente incorreto de Landis funciona, porém, é bem poderoso, como costuma ser nos demais filmes do diretor.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Trás-os-Montes (António Reis e Margarida Cordeiro, Portugal, 1976)


Quanto mais vejo do pouco que ainda conheço do cinema português, mais se atiça minha curiosidade sobre a filmografia desse país. Não conhecia nada da obra de António Reis, mas a mostra “O Cinema de Pedro Costa”, que está acontecendo atualmente aqui em Brasília no CCBB, tem uma belíssima seção denominada “Carta Branca a Pedro Costa”, em que o próprio cineasta escolheu 4 filmes para serem exibidos (além deste e do mais manjado porém belíssimo “Gente da Sicília”, de Straub e Huillet, estão presentes “Beauty #2”, do Andy Warhol, e “Número Zero”, do Jean Eustache). Confiado na credencial de Costa e nas outras belas escolhas que fez para a mostra, fui assistir “Trás-os-Montes” com altíssima expectativa, e, de fato, este terminou por se revelar um belíssimo filme. Está aqui o mesmo olhar maravilhado diante do que se filma, o que me lembrou um pouco “Aquele Querido Mês de Agosto” ou os filmes do Apichatpong Weerasethakul ou ainda o próprio “Gente da Sicília”, apesar de cada um dos cineastas serem bastante diferentes. Reis e Cordeiro fazem aqui um registro pictórico-geográfico-poético da província de Trás-os-Montes, filmando indivíduos de diversas aldeias e vilarejos da região, sobretudo crianças, mulheres e velhos. Perpassa todo o filme o sentimento da ausência, em especial a dos chefes de família, como o pai da menina, emigrado para a Argentina e a quem a filha só conhece já com uns 12 anos, em um encontro rapidíssimo (a despedida dura bastante tempo, num plano longo e belíssimo, que lembra um pouco o plano de Claudette Colbert se despedindo de Henry Fonda, que parte com a tropa, em “Drums Along the Mohawk”) ou o marido emigrado para a Alemanha que envia uma carta à família. O olhar maravilhado se irmana ao olhar das crianças do início do filme, fascinadas com a amplidão dos espaços montanhosos, com o casarão cheio de relíquias. A quem se interessar pela obra de Reis, há um belo blog dedicado a sua obra, com uma puta fortuna crítica de todos os seus filmes, além de diversas entrevistas, fotos e textos do próprio cineasta.

"Trás-os-Montes" e "Drums Along the Mohawk"

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Aquele Querido Mês de Agosto (Miguel Gomes, Portugal / França, 2008)


O cinema português tem se mostrado ultimamente bem instigante. Este é um filme cuja chave é o olhar maravilhado diante do mundo e é esse olhar que dará o tom de toda sua duração. No início o filme aparenta não ter um objeto específico. Vemos diversas sequências de bandas de pequenos vilarejos da região de Arganil, em Portugal, tocando músicas populares, além de entrevistas com indivíduos desses vilarejos. Aos poucos, um enredo começa a tomar forma, com uma equipe cinematográfica (interpretada pela própria equipe do filme) que está rodando (ou está para rodar) um filme de ficção ali naquela região. Uma sequência chave, mais pro meio do filme, mostra uma discussão entre o produtor e o diretor em torno das filmagens. O produtor reclama que não se está seguindo o roteiro, e o diretor reclama da falta de recursos. Na segunda metade do filme vemos o filme de ficção que supostamente era para ser rodado desde o início. Ali vemos voltar diversos dos motivos (pessoas, falas, músicas, situações) que já havíamos visto na primeira parte, documental. Também nessa parte ficcional, a chave é o olhar maravilhado. Há uma paixão pelos ambientes retratados, pelas pessoas, pelas músicas bregas tocadas o tempo todo. Lendo um pouco sobre a produção do filme, fiquei sabendo que a equipe rodou a primeira parte em agosto de um ano e voltou em agosto do ano seguinte, para rodar a segunda parte. O simbolismo desse mês parece ser muito forte em Portugal, em particular nesses vilarejos. Agosto é o mês em que os jovens, que saem dos vilarejos para as cidades, voltam para visitar seus familiares. É também o mês em que, devido a esse retorno, abundam as festas nos vilarejos, retratadas em profusão. A sequência dos créditos finais é engraçadíssima. O diretor novamente começa uma discussão, dessa vez com o responsável pela captação de som, reclamando que os sons captados não correspondem ao que a câmera enquadra, ao que o técnico de som argumenta que os sons registrados são fruto de suas opções pessoais, que devem ser respeitadas. Diversos outros membros da equipe entram na discussão enquanto cada um deles é apresentado nominalmente nos créditos à medida que participam da discussão. Ao fim, mais uma surpresa: começa a tocar “Tudo Passará”, do Nelson Ned. Sensacional. Definitivamente, um filme a se rever.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

JCVD (Mabrouk El Mechri, Bélgica / Luxemburgo / França, 2008)


Dando continuidade ao meu mini-festival temático sobre documentários-retratos a respeito de esportistas, abri um parêntese com este filme que não é um documentário, nem é sobre um esportista. Achei, no entanto, que este filme de ficção em que Jean-Claude Van Damme faz o papel de si próprio como um ator em fim de carreira voltando à Bélgica, sua terra natal onde ainda é idolatrado, poderia fazer um diálogo interessante com “Tyson”, uma vez que tanto Mike Tyson quanto Van Damme são dois grandes ícones da luta do fim dos anos 80 e começo dos 90, ainda que o primeiro o seja na vida real e o segundo no universo da ficção. De fato, o diálogo entre os dois filmes se revelou bastante interessante. Enquanto em “Tyson”, o boxeador se expõe numa parcialidade bem cara-de-pau no relato sobre sua vida e carreira, aqui Van Damme se expõe numa auto-zoação impressionante. No filme, o ator está em uma disputa judicial pela guarda de sua filha, que vive nos Estados Unidos e se recusa a ficar com o pai por não querer mais ser alvo de piadas entre os colegas. Sobra também para Steven Seagal, que rouba um papel de Van Damme por prometer cortar seu infame rabo-de-cavalo. Em uma sequência sensacional, Van Damme está em meio a um assalto a banco em que é confundido pela polícia como o responsável pelo roubo e é repentinamente suspenso do espaço-tempo da ação para conversar diretamente com a câmera sobre sua desilusão com Hollywood. O filme tem algumas fraquezas, como o desejo de parecer moderninho demais (alguns tiques “pulp-fictionescos” como a repetição de sequências sob diferentes ângulos e o vai-e-vem temporal são bastante injustificáveis e poderiam ser descartados; a fotografia de um verde-prata meio “Ensaio sobre a Cegueira” é bem feia), mas o resultado final é um bocado divertido.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

(Parênteses literários: Ernesto Sabato)


Sabato, usando outras palavras para falar da queda do homem depois de comer o fruto proibido da árvore do conhecimento do bem e do mal, e do papel da arte na tentativa de reconexão com o paraíso perdido:

E naquele reduto solitário me punha a escrever contos. Agora percebo que escrevia cada vez que era infeliz, que me sentia só ou desconectado do mundo em que me coube nascer. E penso se não será sempre assim, que a arte do nosso tempo, essa arte tensa e escandalosa, nasça invariavelmente de nosso desajuste, de nossa ansiedade e nossa insatisfação. Uma espécie de tentativa de reconciliação com o universo dessa raça de criaturas frágeis, inquietas e angustiadas que são os seres humanos. Pois os animais não precisam dela: basta-lhes viver. Porque sua existência se desliza harmoniosamente com as necessidades atávicas. E para o pássaro bastam algumas sementinhas ou minhocas, uma árvore para construir seu ninho, grandes espaços para voar; e sua vida transcorre desde seu nascimento até sua morte em um venturoso ritmo que não é nunca perturbado nem pelo desespero metafísico, nem pela loucura. Já o homem, ao levantar-se sobre as duas patas traseiras e ao transformar em um machado a primeira pedra cortante, instituiu as bases de sua grandeza mas também as origens de sua angústia; porque com suas mãos e com os instrumentos feitos com suas mãos erigiria essa construção tão potente e estranha que se chama cultura e iniciaria assim sua grande desconexão, já que terá deixado de ser um simples animal mas não terá chegado a ser o deus que seu espírito lhe sugeria. Será esse ser dual e desgraçado que se move e vive entre a terra dos animais e o céu de seus deuses, que terá perdido o paraíso terrestre de sua inocência e não terá conquistado o paraíso celeste de sua redenção. Esse ser dolorido e doente do espírito que se perguntará, pela primeira vez, sobre o porquê de sua existência. E assim as mãos, e em seguida aquele machado, aquele fogo, e em seguida a ciência e a técnica terão ido cavando cada dia mais o abismo que o separa de sua raça originária e de sua felicidade zoológica. E a cidade será finalmente a última etapa de sua louca corrida, a expressão máxima de seu orgulho e a máxima forma de sua alienação. E então seres descontentes, um pouco cegos e um pouco como enlouquecidos, tentam recuperar às cegas aquela harmonia perdida com o mistério e o sangue, pintando ou escrevendo uma realidade diferente da que desgraçadamente os rodeia, uma realidade muitas vezes de aparência fantástica e demente, mas que, coisa curiosa, acaba sendo finalmente mais profunda e verdadeira que a cotidiana. E assim, sonhando um pouco por todos, esses seres frágeis conseguem erguer-se sobre sua desventura individual e transformam-se em intérpretes e até em salvadores (dolorosos) do destino coletivo.

Ernesto Sabato. Sobre Héroes y Tumbas (1961). Buenos Aires: La Nación, 2001, p. 471-472 (minha tradução)

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Mary Stuart, Rainha da Escócia (Mary of Scotland, John Ford, Estados Unidos, 1936)


Fruto de um breve período aparentemente menos inspirado de Ford (pelo menos é o que Tag Gallagher afirma em seu livro), este filme não tem a força da maioria de seus outros trabalhos, mas mesmo assim não deixa de ser um grande filme. Pouco se vê de sua assinatura aqui, talvez por conta dos conflitos que dizem ter existido entre Ford e Katharine Hepburn. Me parece que este filme acaba por ser mais um star vehicle da atriz que um filme autoral de Ford (mesmo que os filmes de bons autores hollywoodianos do período e de Ford em particular costume ser uma mistura das duas coisas). Chama atenção a atmosfera opressora do castelo em que vive a protagonista, reminiscência das fortes influências do expressionismo alemão na obra do diretor, principalmente nos filmes realizados entre 1928 e 1935 (“Four Sons”, “Hangman’s House”, “Arrowsmith”, “The Informer”). Destaca-se ainda, como sempre, a presença magnética de John Carradine em papel menor, como o braço direito da rainha.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Schlock (John Landis, Estados Unidos, 1973)


Primeiro filme de Landis, "Schlock” está mais próximo dos filmes trash da Troma (produtora que realizou filmes como a série “Toxic Avenger” e “Cannibal! The Musical”) que para os filmes posteriores do diretor. É a história de um macaco (o “elo perdido”) serial killer que deixa cascas de banana nas cenas dos crimes e se apaixona por uma garota, em referência a “King Kong”. No entanto, já estão aqui algumas características típicas de Landis, como o acúmulo de situações cômicas que praticamente prescindem de um enredo. Há situações hilárias e grotescas, como a da emissora de TV que promove um concurso para que os telespectadores adivinhem o número de pessoas mortas que corresponde aos pedaços de corpos esquartejados reunidos em sacos pela polícia. No momento em que o repórter anuncia o concurso, um braço em um dos sacos começa a mexer e alguém da equipe da TV dá um chute para ele parar. Landis faz o papel de Schlock, o macaco, em uma fantasia bem fuleira, tipo Monga, a Mulher-Gorila.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Estupro (José Mojica Marins, Brasil, 1979)


Filme menor de Mojica, este é um exemplo do quanto seus filmes que não são de terror tendem a ter muito menos força que os do gênero em que o diretor é especialista. Não há aqui a inventividade visual dos filmes com o Zé do Caixão, como a brilhante sequência do inferno de gelo em “Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver” (1967). Resta apenas um filme exploitation com alguns momentos de diversão (os personagens interpretados pelo próprio Mojica são sempre sensacionais em sua canastrice) e um enredo humorístico um pouco óbvio, mas que ainda assim proporciona certa diversão.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Independencia (Raya Martin, França / Filipinas / Alemanha / Holanda, 2009)


“Independencia” é parte de um impressionante projeto de Raya Martin que pretende documentar a história das Filipinas, particularmente os três períodos de dominação / colonização pelos quais o país passou. O anterior “Um Pequeno Filme Sobre o Índio Nacional - ou a Prolongada Agonia dos Filipinos” (“Maicling Pelicula Nañg Ysañg Indio Nacional - O Ang Mahabang Kalungkutan ng Katagalugan”, 2005) tratava da colonização espanhola e da Revolução Filipina de 1896. Para tanto, Martin utilizava um instrumental do cinema mudo, como se almejasse recriar um filme que tivesse sido realizado naquele período. O resultado é bem instigante, para além da mera proeza ou ousadia de linguagem. Neste “Independencia", o diretor trata da dominação estadunidense do começo do século XX até 1946. Semelhantemente ao filme anterior, Martin utiliza elementos da linguagem cinematográfica hollywoodiana do início do cinema sonoro dos anos 30 / 40: filmagem em estúdio, cenários pintados, forte maquiagem, iluminação artificial, som dublado. O resultado pode não ser tão impactante quanto o filme anterior (impacto que se dá, em parte, pela novidade da proposta, amenizada aqui depois de já visto o primeiro), mas este é também um filme muito bom. A artificialidade do dispositivo cria um ambiente irreal, quase onírico, que se choca com a brutalidade do que vivem os personagens. O diretor afirmou em uma entrevista concedida à cinema-scope que o cinema filipino carece de um arquivo, pois grande parte dos filmes realizados no país antes da II Guerra Mundial foi destruído, restando apenas quatro filmes muito mal conservados. Parece, então, que parte do propósito de Martin é reconstruir hipoteticamente parte dessa filmografia. O diretor ainda pretende realizar um terceiro filme, dessa vez sobre a ocupação japonesa durante a II Guerra Mundial.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Tyson (James Toback, Estados Unidos, 2008)


Ao contrário do que faz Kusturica no filme sobre Maradona, aqui Toback dá total espaço para a fabulação de Tyson. A vida do boxeador é contada toda a partir de seu prisma, num formato de “cabeça falante” que aqui funciona surpreendentemente bem, uma vez que a história que Mike Tyson constrói em torno de si é fantástica. No seu modo de contá-la, a história é descaradamente parcial, não há outros lados, e Tyson se pinta grande parte do tempo como vítima de si próprio, de sua juventude e despreparo para lidar com a fama. Sua voz quase fanha e sua língua presa contrastam com a dureza de seu rosto tatuado e nos trazem para mais perto da pessoa do boxeador, gerando certa empatia. Complementam o filme algumas inserções de material de arquivo de TV, que funcionam muito bem, principalmente os abundantes registros das lutas.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Maradona by Kusturica (Emir Kusturica, Espanha / França, 2008)


A sequência de abertura do filme é sintomática. Emir Kusturica com uma guitarra, num show de sua banda em Buenos Aires. Alguém diz ao microfone: "Senhoras e senhores, na guitarra, señor Diego Armando Maradona do mundo do cinema!” Durante todo o resto do documentário, irrita a clara preocupação de Kusturica em falar mais de si mesmo, dos seus filmes, de sua genialidade, do que de Maradona, que aqui parece apenas um pretexto. Chega a ser deprimente o esforço do cineasta em se equiparar à genialidade do jogador em campo. Em alguns momentos raros, em que o diretor dá espaço a Maradona para que ele faça o que melhor sabe fazer (encenar, atuar), o filme tem bastante força. Um exemplo é a sequência em que Maradona sobe ao palco de um bar para cantar “La Mano de Dios”: “Y todo el pueblo cantó / Maradó, Maradó / Nació la mano de Dios / Maradó, Maradó”. Infelizmente são pouquíssimos momentos em que isso acontece, e a sensação é a de que Maradona precisava de um cineasta que não se tivesse em tão alta conta para dirigir um filme digno do que o jogador representa não só para o futebol, como para a cultura mundial. Mal comparando, é interessante pensar em como um cineasta péssimo como Darren Aronofsky conseguiu fazer um filme maravilhoso como “O Lutador” (The Wrestler, 2008) ao entregá-lo todo a Mickey Rourke e se reduzir à sua insignificância. Outra coisa que chama atenção no filme de Kusturica é a inacreditável falta de espaço para o futebol de Maradona. Há apenas algumas breves inserções de “melhores momentos”, com alguns dos gols mais bonitos de sua carreira, e só.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Zidane: um Retrato do Século XXI (Zidane, un Portrait du 21e Siècle, Douglas Gordon et Philippe Parreno, França / Islândia, 2006)


Dando um intervalo na saudável overdose de Ford que tenho tido ultimamente e ainda na ressaca da Copa do Mundo, resolvi ver alguns documentários-retratos sobre esportistas. Comecei por este curioso filme sobre Zidane, que não segue o padrão do documentário baseado em entrevistas. É simplesmente o registro da última partida de Zidane pelo Real Madrid, contra o Villarreal, antes de sua aposentadoria em 2006. Mas o registro do jogo também não é tradicional, optando por focar o tempo inteiro em Zidane. O que interessa, então, não é o jogo em si (às vezes é até difícil entender o que está acontecendo, e eu terminei o filme sem saber qual tinha sido o resultado da partida). O que importa é Zidane, seus tiques, suas expressões, seu corpo. O jogador é famoso por ser uma figura enigmática, e a estratégia adotada pelos realizadores ressalta ainda mais esse aspecto. O close constante em seu rosto revela que ele mantém uma expressão fechada grande parte do jogo, não comemorando ou sorrindo quando seu time marca gols. A bela trilha sonora do Mogwai ajuda ainda mais a criar a atmosfera enigmática do filme. Zidane participa efetivamente em poucos lances da partida, mas seus passes são invariavelmente decisivos. No fim, como boa amostra da figura que é Zidane, ele é expulso por se envolver numa briga a poucos minutos do término do jogo.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

John Ford 1917-1935 - Alguns destaques (parte 2/2)


Continuando:

6) Carne (Flesh, Estados Unidos, 1932)

O talento cômico de Ford é bastante evidente aqui, ao fazer um filme hilário a partir de um tema trágico. Wallace Beery faz o papel do tolo ingênuo enganado pela mulher que ama. No espírito cristão do “Bem aventurados os pobres de espírito”, Ford costuma conceder a felicidade aos ingênuos, como é o caso aqui. Ainda que o final nos pareça bem triste, não é assim que o vê o personagem de Beery.

7) Doutor Bull (Doctor Bull, Estados Unidos, 1933)

Primeiro dos 3 filmes realizados em parceria com Will Rogers, que aqui encarna o herói inadaptado a uma sociedade hipócrita, dominada pela fofoca.

8) Peregrinação (Pilgrimage, Estados Unidos, 1933)

Este filme guarda várias semelhanças com “Four Sons”. Novamente, a guerra destrói uma família. Novamente, a protagonista é uma mãe. Ford faz aqui um trabalho impressionante, de construir uma protagonista bastante odiável, mas com quem não conseguimos deixar de ter certa empatia.

9) Juiz Priest (Judge Priest, Estados Unidos, 1934)

Will Rogers encarna aqui mais um herói fordiano cujo papel primordial é reunir uma família. Destaque para os papéis cômicos de Stepin Fetchit e Francis Ford, irmão do diretor e grande inspiração no início de sua carreira.
 

10) O Delator (The Informer, Estados Unidos, 1935)

O ano de 1935 foi especialmente feliz para Ford, que realizou 3 belíssimos filmes em sequência. Aqui a influência do expressionismo alemão se faz notar de forma particularmente forte. É um filme pesado visualmente, de atmosfera carregada. O catolicismo do diretor está presente no binômio culpa / arrependimento com o qual o personagem de Victor McLaglen atravessa o filme. A sequência do julgamento realizado pelos rebeldes irlandeses lembra um pouco o julgamento do personagem de Peter Lorre realizado pelos criminosos em “M, o Vampiro de Dusseldorf” (Fritz Lang, 1931).

11) O Homem que Nunca Pecou (The Whole Town's Talking, Estados Unidos, 1935)

Interessante exercício de Ford no gênero “o homem errado” imortalizado por Hitchcock. Edward G. Robinson está magnífico no papel duplo do funcionário exemplar falsamente acusado e do assassino com o qual a polícia o confunde. Da série “Tradutores Muito Loucos e seus Títulos do Barulho”, é engraçado notar a obsessão com a palavra “pecado” de muitos títulos traduzidos de filmes clássicos, como “O Pecado de Cluny Brown” (“Cluny Brown”, Ernst Lubitsch, 1946), “Só a Mulher Peca” (“Clash by Night”, Fritz Lang, 1952), “Adorável Pecadora” (“Let’s Make Love”, George Cukor, 1960) e “Quando Duas Mulheres Pecam” (“Persona”, Ingmar Bergman, 1966).
 

12) Nas Águas do Rio (Steamboat Round the Bend, Estados Unidos, 1935)

Último filme da feliz parceria com Will Rogers. Grande parte do elenco de “Judge Priest” é repetido aqui, com destaque novamente para os papéis cômicos de Stepin Fetchit e Francis Ford. Este último ganha papel mais relevante para a trama e com mais tempo de participação, coisa rara nos outros filmes de que participa, em que costuma ter aparição episódica, ainda que normalmente com grandes efeitos cômicos. Vemos aqui e nos outros dois filmes com Rogers os primórdios dos retratos de comunidades que serão desenvolvidos belissimamente por Ford em filmes posteriores como “How Green Was My Valley”, “They Were Expendable”, a trilogia da cavalaria e “The Quiet Man”.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

John Ford 1917-1935 - Alguns destaques (parte 1/2)


Acabei de ler recentemente um livro maravilhoso sobre Ford, escrito pelo Tag Gallagher (“John Ford: The Man and His Films”), disponível em pdf no site do próprio autor. Recomendo a leitura a todos que se interessem pela filmografia do diretor. O livro traz algumas notas biográficas, mas centra-se na análise dos filmes, discorrendo sobre praticamente todos eles, a partir de 1928. Dizem que o livro do Peter Bogdanovich, “John Ford”, também é muito bom.

Seguem alguns destaques do que tenho visto dos primeiros filmes da carreira do diretor, no período de 1917 a 1935 (vou dividir em dois posts para não ficar muito gigantesco).

1) Straight Shooting (Estados Unidos, 1917)

Ao que parece, este é o filme mais antigo de Ford com cópia ainda existente e seu primeiro longa-metragem. “Straight Shooting” já valeria pelo documento histórico que é, pois é uma rara amostra dos 25 filmes que Ford fez entre 1917 e 1921 com Harry Carey como protagonista, interpretando quase sempre o mesmo personagem, Cheyenne Harry. Quase todos os filmes dessa época se perderam, restando hoje apenas, além deste, “Bucking Broadway” e “Hell Bent”, mais pedaços de “The Scarlet Drop” e de “A Gun Fightin’ Gentleman”. Aqui já se nota a figura do herói fordiano solitário, que chega para desfazer uma injustiça, reunir uma família. Diz a lenda que a versão original terminava com Cheyenne Harry sozinho, devolvendo a mocinha Molly para o mocinho Sam, algo tipicamente fordiano, mas a versão disponível hoje, supostamente reeditada pela Universal, termina com um final feliz, em que Harry fica com Molly.

2) O Cavalo de Ferro (The Iron Horse, Estados Unidos, 1924)

Grande épico sobre a construção de uma nação. Chama a atenção a visão ao mesmo tempo grandiosa e pessimista de Ford, que pinta o processo com traição, ganância inescrupulosa e muitas mortes (é dado especial destaque às várias sequências de enterros durante o filme). Aqui o talento de Ford para pintar grandes painéis sobre a história dos Estados Unidos já está bem amadurecido.

3) Os Três Homens Maus (3 Bad Men, Estados Unidos, 1926)

Aqui o típico herói fordiano é dividido em 3 “bandidos bons”, que salvam a vida da mocinha e se sacrificam para reunir uma família. Fica clara a simpatia de Ford pelos deserdados da sociedade, uma constante em sua obra.

4) Quatro Filhos (Four Sons, Estados Unidos, 1928)

Espécie de antecipação ao maravilhoso “Pilgrimage”, de 1933, aqui também temos uma mãe como figura central. O filme retrata uma família destruída pela I Guerra Mundial. Três dos filhos lutam pela Alemanha, enquanto o quarto luta do lado oposto, pelos Estados Unidos. Ford, que às vezes parece um entusiasta do exército, faz aqui um retrato desolador da guerra. Neste filme começa a se tornar evidente uma forte influência do expressionismo alemão na composição visual, fruto da admiração de Ford por Murnau, que marcará boa parte de seus filmes, pelo menos até 1935.

5) Justiça do Amor (Hangman's House, Estados Unidos, 1928)

É estranho ver Victor McLaglen em um papel não cômico, depois de me acostumar com ele nos filmes de Ford dos anos 40 e 50, como a trilogia da cavalaria (“Fort Apache”, “She Wore a Yellow Ribbon”, “Rio Grande”) e “The Quiet Man”, em que faz papéis engraçadíssimos. Antes disso, porém, ele bancava o protagonista galã nos filmes do diretor. Aqui ele faz o papel do herói fordiano que novamente chega para desfazer uma injustiça (o pai da mocinha quer casá-la com um malfeitor rico, apesar de ela ter planos de se casar com outro). Como bom herói fordiano, o personagem de McLaglen se apaixona pela mocinha, mas cumpre seu papel de juntar o casal e ir embora sozinho no fim.