quinta-feira, 28 de outubro de 2010

(Parênteses literários III: Jean-Louis Comolli II - Ford x De Mille)

“Ver e poder? Convencemo-nos com facilidade, nas salas escuras, que os desafios de mise en scène são duplos - estéticos e políticos; e que o nosso lugar de espectadores não está separado do de sujeitos políticos, que não deixamos de ser. Diz-se ‘representação’ tanto da mise en scène, quanto do sistema político. A história do cinema é (ou deveria ser), antes de mais nada, a história desses momentos em que ver e poder se relacionam em um balé catastrófico, sejam as tentativas dos poderes políticos de comandar as atividades cinematográficas, as violentas pressões exercidas pelos poderes econômicos para controlar os cineastas e conduzir os filmes como performances técnicas, as guerras ou batalhas que opuseram as companhias entre si, as independentes contra os trustes, os criadores contra os banqueiros e, em última instância, os cineastas uns contra os outros. Um exemplo. Estamos em 1947, em Hollywood, a ‘caça às bruxas’ macartista avança. Cecil B. De Mille reúne algumas centenas de cineastas para incitá-los a assinar uma declaração condenando qualquer contato passado, presente ou futuro com comunistas. A discussão se alonga. Por volta das duas horas da madrugada, conta Joseph L. Mankiewicz*, uma mão se ergue. ‘My name is John Ford.’ Ford era então o mais admirado de todos os hollywoodianos. Ele prossegue, se dirigindo a De Mille: ‘Eu te respeito, mas eu não gosto de você. Eu não gosto de nada que você defende, nem do que você representa.’ A moção não foi votada. Não posso me furtar a compreender esse face a face tanto em seu sentido político (Ford e De Mille, homens ‘de direita’, não têm a mesma concepção da América e da democracia), quanto em sua dimensão artística. Duas práticas da mise en scène que são também duas formas de pensar a vida em sociedade. De um lado, a tentação espetacular e o culto dos heróis; do outro, a crítica aos fanatismos e o amor pelos gestos simples, a começar pelo modo de filmar. Vejo as escolhas políticas e as escolhas estéticas se corresponderem. O cinema, arte política?”
 * Citado por Jean Douchet em sua análise filmada: Em busca de ‘The Searchers’, 52 minutos, produzida pela Scérén (Éducation Nationale, 2003).

Jean-Louis Comolli. Introdução - 1. A inocência perdida, in: Voir et Pouvoir. L’innocence perdue: cinéma, télévision, fiction, documentaire. Lagrasse: Verdier, 2004, p. 15-16 (minha tradução)

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Almôndegas (Meatballs, Ivan Reitman, Canadá, 1979)


Estreia cinematográfica de Bill Murray, “Meatballs” não é um grande filme, mas se beneficia bastante da presença do ator. Típico filme de sessão da tarde, em que Murray interpreta um instrutor de um summer camp (colônia de férias gringa), beirando um overacting que funciona muito bem para efeitos cômicos, dado o magnetismo e a cara de besta do ator. A sequência em que o personagem de Murray “encoraja” seus colegas do Camp North Star durante a olimpíada contra o Camp Mohawk, dizendo que não importa o desempenho da equipe, que mesmo se eles ganharem a olimpíada os rivais continuarão sendo mais bonitos e ricos, é hilária e compensa qualquer defeito do filme.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Ao Rufar dos Tambores (Drums Along the Mohawk, John Ford, Estados Unidos, 1939)



Mesmo não sendo uma obra-prima como os outros dois filmes realizados por Ford em 1939, este filme confirma a ótima fase do diretor, que praticamente repetiu o feito de 1935, realizando três filmes muito bons num mesmo ano. Henry Fonda e Claudette Colbert interpretam aqui recém-casados no meio do turbilhão da guerra estadunidense pela independência. Ainda em lua-de-mel, o casal parte pro interior, onde o personagem de Fonda se junta a uma milícia para combater os ingleses e os índios por eles cooptados. Ford utiliza o enredo como mais uma oportunidade para explorar o retrato de comunidades majoritariamente masculinas, como é de seu gosto, principalmente em seus filmes sobre o exército. Até em meio às sequências de batalha, Ford encontra espaço para o seu humor, como no momento em que a casa da viúva McKlennar é invadida por dois índios carregando tochas para queimar tudo. A viúva, resoluta a não sair da cama que dividiu por tantos anos com o falecido marido ou da casa que os dois construíram, obriga os índios a carregarem sua cama pra fora.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

The T.A.M.I. Show (Steve Binder, Estados Unidos, 1964)


Registro de um show realizado em 1964, reunindo grandes nomes do rock n’ roll e da black music, como Chuck Berry, The Miracles, Marvin Gaye, Beach Boys, Supremes e Rolling Stones, entre outros nomes menos conhecidos atualmente, este filme é um puta registro histórico. Mas quem rouba a cena mesmo é James Brown, que a maior parte do tempo parece estar em transe, sob a influência de algum psicotrópico. Brown entra no palco fazendo um proto-moonwalking, canta fora do microfone, se joga no chão, numa energia impressionante. Perto de sua performance, todas as outras parecem meio burocráticas, e até a ótima apresentação dos Rolling Stones, que vem logo em seguida, perde grande parte de sua força. Há outros bons momentos, como a canastrice de Gerry Marsden, do Gerry & The Pacemakers, mandando beijinhos e dando tchauzinho pra plateia majoritariamente feminina, as danças meio Charlie Brown / Scooby Doo, as tentativas desengonçadas de dança de Mike Love, do Beach Boys, as músicas corna-mansa de Lesley Gore (uma delas com a impagável letra “Maybe I know that he's been a cheatin' / Maybe I know that he's been untrue / But what can I do / Deep down inside he loves me / Though he may run around / Deep down inside he loves me / Some day he'll settle down”). O centro do filme, porém, é definitivamente James Brown. Fora de circulação por muito tempo, o filme foi lançado em DVD no início deste ano. Ainda não vi o bem falado “Uma Noite em 67”, documentário de Renato Terra e Ricardo Calil que esteve recentemente em cartaz, mas talvez os dois filmes façam um diálogo interessante.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

A Mocidade de Lincoln (Young Mr. Lincoln, John Ford, Estados Unidos, 1939)



Rodado no mesmo ano de “Stagecoach”, este filme, que conta uma história fictícia de Abraham Lincoln como advogado de início de carreira, confirma 1939 como outro grande ano na carreira de Ford (como já havia sido 1935). O personagem Lincoln, interpretado por Henry Fonda, é pretexto aqui para o exercício de uma obsessão de Ford: o herói que tem como obrigação desfazer uma injustiça (dois irmãos acusados de um assassinato que não cometeram) e reunir uma família, partindo sozinho no final. O discurso de Lincoln ao tentar impedir o linchamento dos irmãos é sensacional: “Costumamos perder a cabeça nessas horas. Fazemos coisas em grupo que nos envergonharíamos de fazer sozinhos”. Me lembrou um filme que Fritz Lang fez poucos anos antes, “Fury” (1936).  O humor de Ford aqui está bem presente, quase descambando para o besteirol nas piadinhas de Lincoln no tribunal. Ao interrogar como testemunha J. Palmer Cass, personagem de Ward Bond, que ao fim se revela o grande vilão do filme, Lincoln pergunta qual é seu primeiro nome (John). Então, Lincoln pergunta se alguém já o chamou de Jack e questiona o por quê de ele não ser conhecido como John P. Cass, se ele tem algum problema com seu nome ou algo a esconder. Cass responde que o nome é dele e ele escolhe como ser chamado, ao que Lincoln retruca: “Se você não se importa, te chamarei de Jack Cass” (Jackass), ao que todo o tribunal cai na risada.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

A Máscara do Anonimato (Masked and Anonymous, Larry Charles, Estados Unidos / Inglaterra, 2003)


Estreia cinematográfica de Larry Charles, que vinha de bela carreira na televisão, participando da equipe criativa das séries "Seinfeld" e "Curb Your Enthusiasm", e que realizaria posteriormente dois filmes engraçadíssimos com Sacha Baron Cohen (Borat, de 2006, e Brüno, de 2009). Este filme, porém, deixa um pouco a desejar, apesar das promessas do currículo do diretor, de um puta elenco (Bob Dylan, Jeff Bridges, Penélope Cruz, John Goodman, Luke Wilson, Cheech Marin, Giovanni Ribisi) e de um roteiro de Charles e de Dylan (sob pseudônimos). O enredo tem como pano de fundo um país em guerra civil. Goodman interpreta um empresário que organiza um show com propósitos falsamente beneficentes, supostamente para angariar fundos para a paz nacional, mas a intenção, na verdade, é desviar o dinheiro para o próprio bolso. Como não consegue grandes nomes como Paul McCartney ou Sting, o empresário contrata Jack Fate, músico que estava no ostracismo, interpretado por Dylan (apesar de ser um músico fictício, as músicas executadas no filme são do próprio Dylan). O filme peca pelo interesse desmesurado no exotismo da cenografia e da interpretação exagerada de grande parte dos atores, nos personagens caricatos, quase um freak show. Em meio a tanta afetação, a interpretação low-profile de Dylan é quase um alívio.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

No Tempo das Diligências (Stagecoach, John Ford, Estados Unidos, 1939)


Ford costuma ser muito criticado por seus detratores por ser supostamente direitista, reacionário, racista, um pouco por conta das próprias posições políticas ambíguas que tomava, um pouco pela persona autoritária que gostava de assumir, mas em grande parte pela percepção equivocada daqueles que assistem mal a seus filmes. Neste filme, é claríssimo o espírito libertário do autor, que simpatiza com os personagens párias, com os deserdados da sociedade: a prostituta, o bandido, o médico alcoólatra, em contraposição ao banqueiro, às senhoras respeitáveis e fuxiqueiras da “Liga da Lei e da Ordem”. Como já havia feito anteriormente nos filmes protagonizados por Will Rogers (“Doctor Bull”, “Judge Priest” e “Steamboat Round the Bend”), Ford contrapõe seus heróis à sociedade hipócrita e reacionária. A felicidade possível pertence àqueles que conseguem escapar da civilização sufocante (na fala de Doc Boone, quando o xerife deixa Ringo Kid escapar da prisão e fugir com Dallas para o seu rancho no fim do filme, “eles estão salvos das bênçãos da civilização”). Novamente Ford exercita seu talento cômico baseado em esquetes com diversos personagens, como aqueles belamente interpretados por Andy Devine, Thomas Mitchell e Donald Meek (este último já havia feito uma breve mas engraçadíssima participação em “The Whole Town’s Talking” como o cara que delata o personagem de Edward G. Robinson para a polícia e aparece em diversos momentos perguntando onde pode pegar sua recompensa). A entrada quase mítica em cena de John Wayne, em seu primeiro papel de destaque em Ford, é apontada por muitos como uma visão profética daquele que viria a ser a grande estrela dos faroestes (a câmera avança em zoom, enquanto Wayne, com um rifle, detém a diligência).

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Kobe Doin’ Work (Spike Lee, Estados Unidos, 2009)


Aparentemente inspirado em “Zidane, un Portrait du 21e Siècle”, que também focava em um esportista durante um jogo específico, este documentário sobre Kobe Bryant não tem a mesma força daquele. O modo de produção de cada um dos documentários tem grande repercussão sobre o resultado de cada um. Este aqui foi produzido para a TV. No entanto, é possível suspeitar que a personalidade de cada um dos retratados nos documentários também se reflita no produto final. Grande parte da força de “Zidane” vem de seu laconismo, com a inserção apenas em lettering de poucas falas de Zidane. Este “Kobe”, por sua vez, é verborrágico. Ouvimos o tempo inteiro a fala de Kobe, não só a fala diegética durante o jogo e intervalos, mas os comentários em off do jogador sobre o jogo, via de regra bem redundantes e pouco interessantes. Em determinado momento, essa verborragia é até ironizada. Em uma sequência de um intervalo de jogo, em que Kobe faz diversos comentários sobre a atuação de seus colegas de time, o jogador diz em off algo como: “É engraçado assistir à gravação, porque eu não sabia que falava tanto!” Há, no entanto, um ou outro bom momento nesses comentários de Kobe, quando, em uma sequência em que dá uma entrevista para a TV durante o intervalo, o jogador ironiza: “Esse momento e terrível. Acabamos de sair do jogo, todo suados, sem fôlego, e temos que fazer o maior esforço para dizer algo que faça minimamente sentido, para não parecermos completos idiotas”.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Vivendo na Corda Bamba (Blue Collar, Paul Schrader, Estados Unidos, 1978)


Belo filme de estreia de Schrader, diretor menos conhecido da geração hollywoodiana que despontou no fim dos anos 60 e principalmente nos 70 com nomes bem mais famosos como Scorsese, De Palma, Coppola, Spielberg e George Lucas. Schrader é talvez mais conhecido como roteirista de “Taxi Driver” (Martin Scorsese, 1976), e eu mesmo ainda não tinha visto nenhum filme seu. Apesar da tradução do título e da presença memorável de Richard Pryor como protagonista, no papel de um operário esquentado e desbocado, o filme não é uma comédia. Pryor, com sua dicção, suas caretas e seu gestual cômico peculiares, sempre dá aos filmes em que atua alguma comicidade, mas o tom geral aqui é de um drama político. O filme conta a história de três operários de uma montadora automobilística (outro dos protagonistas é Harvey Keitel), insatisfeitos com o trabalho e com o sindicato, que resolvem assaltar. Não encontrando muito dinheiro no cofre, mas descobrindo um esquema de agiotagem promovido pelo sindicato, os três resolvem arrumar mais dinheiro por meio de chantagem. Acabam se envolvendo num esquema meio sinistro, que termina na morte de Smokey, o terceiro protagonista (em uma sequência de assassinato bem bizarra, o personagem é secretamente trancado em uma sala de pintura automotiva para morrer sufocado), e na traição e rompimento dos outros dois amigos. Para melhorar ainda mais o filme, a música-tema, “Hard Workin’ Man”, é do ótimo Captain Beefheart. Pretendo em breve voltar à obra de Schrader, pois essa estreia é bem instigante.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

A Queridinha do Vovô (Wee Willie Winkie, John Ford, Estados Unidos, 1937)


Aparentemente, a fase menos inspirada de Ford, apontada por Tag Gallagher, durou muito pouco, já que o diretor realizou 3 filmes magníficos em 1935 (“The Whole Town’s Talking”, “The Informer” e “Steamboat Round the Bend”), 2 menos bons em 1936 (“The Prisoner of Shark Island” e “Mary Stuart”; não assisti “The Plough and the Stars”) e, logo em seguida, rodou este filme maravilhoso. Dois anos depois Ford realizaria as obras-primas “Stagecoach” e “Young Mr. Lincoln”. Aqui em “Wee Willie Winkie” Victor McLaglen, após protagonizar 5 filmes de Ford em papéis mais sérios, encarna pela primeira vez num filme do diretor, salvo engano, a persona cômica de destaque de 4 filmes posteriores (a trilogia da cavalaria e “The Quiet Man”). O ator funciona muito bem com Shirley Temple e as melhores sequências são aquelas em que os dois contracenam. Temple encarna aqui a heroína fordiana inocente que age para trazer paz ao mundo e a uma família em particular. Mais uma vez em Ford, a felicidade pertence aos ingênuos, e o filme se contamina da visão meio naïf da protagonista infantil, chegando perigosamente perto de uma visão bastante imperialista, mas bonita em sua lógica interna. A sequência em que a personagem de Temple canta “Auld Lang Syne” para “ninar” o personagem de McLaglen em seu leito de morte é memorável e de uma melancolia arrebatadora.