segunda-feira, 20 de setembro de 2010

(Parênteses literários: Ernesto Sabato)


Sabato, usando outras palavras para falar da queda do homem depois de comer o fruto proibido da árvore do conhecimento do bem e do mal, e do papel da arte na tentativa de reconexão com o paraíso perdido:

E naquele reduto solitário me punha a escrever contos. Agora percebo que escrevia cada vez que era infeliz, que me sentia só ou desconectado do mundo em que me coube nascer. E penso se não será sempre assim, que a arte do nosso tempo, essa arte tensa e escandalosa, nasça invariavelmente de nosso desajuste, de nossa ansiedade e nossa insatisfação. Uma espécie de tentativa de reconciliação com o universo dessa raça de criaturas frágeis, inquietas e angustiadas que são os seres humanos. Pois os animais não precisam dela: basta-lhes viver. Porque sua existência se desliza harmoniosamente com as necessidades atávicas. E para o pássaro bastam algumas sementinhas ou minhocas, uma árvore para construir seu ninho, grandes espaços para voar; e sua vida transcorre desde seu nascimento até sua morte em um venturoso ritmo que não é nunca perturbado nem pelo desespero metafísico, nem pela loucura. Já o homem, ao levantar-se sobre as duas patas traseiras e ao transformar em um machado a primeira pedra cortante, instituiu as bases de sua grandeza mas também as origens de sua angústia; porque com suas mãos e com os instrumentos feitos com suas mãos erigiria essa construção tão potente e estranha que se chama cultura e iniciaria assim sua grande desconexão, já que terá deixado de ser um simples animal mas não terá chegado a ser o deus que seu espírito lhe sugeria. Será esse ser dual e desgraçado que se move e vive entre a terra dos animais e o céu de seus deuses, que terá perdido o paraíso terrestre de sua inocência e não terá conquistado o paraíso celeste de sua redenção. Esse ser dolorido e doente do espírito que se perguntará, pela primeira vez, sobre o porquê de sua existência. E assim as mãos, e em seguida aquele machado, aquele fogo, e em seguida a ciência e a técnica terão ido cavando cada dia mais o abismo que o separa de sua raça originária e de sua felicidade zoológica. E a cidade será finalmente a última etapa de sua louca corrida, a expressão máxima de seu orgulho e a máxima forma de sua alienação. E então seres descontentes, um pouco cegos e um pouco como enlouquecidos, tentam recuperar às cegas aquela harmonia perdida com o mistério e o sangue, pintando ou escrevendo uma realidade diferente da que desgraçadamente os rodeia, uma realidade muitas vezes de aparência fantástica e demente, mas que, coisa curiosa, acaba sendo finalmente mais profunda e verdadeira que a cotidiana. E assim, sonhando um pouco por todos, esses seres frágeis conseguem erguer-se sobre sua desventura individual e transformam-se em intérpretes e até em salvadores (dolorosos) do destino coletivo.

Ernesto Sabato. Sobre Héroes y Tumbas (1961). Buenos Aires: La Nación, 2001, p. 471-472 (minha tradução)

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