“Ver e poder? Convencemo-nos com facilidade, nas salas escuras, que os desafios de mise en scène são duplos - estéticos e políticos; e que o nosso lugar de espectadores não está separado do de sujeitos políticos, que não deixamos de ser. Diz-se ‘representação’ tanto da mise en scène, quanto do sistema político. A história do cinema é (ou deveria ser), antes de mais nada, a história desses momentos em que ver e poder se relacionam em um balé catastrófico, sejam as tentativas dos poderes políticos de comandar as atividades cinematográficas, as violentas pressões exercidas pelos poderes econômicos para controlar os cineastas e conduzir os filmes como performances técnicas, as guerras ou batalhas que opuseram as companhias entre si, as independentes contra os trustes, os criadores contra os banqueiros e, em última instância, os cineastas uns contra os outros. Um exemplo. Estamos em 1947, em Hollywood, a ‘caça às bruxas’ macartista avança. Cecil B. De Mille reúne algumas centenas de cineastas para incitá-los a assinar uma declaração condenando qualquer contato passado, presente ou futuro com comunistas. A discussão se alonga. Por volta das duas horas da madrugada, conta Joseph L. Mankiewicz*, uma mão se ergue. ‘My name is John Ford.’ Ford era então o mais admirado de todos os hollywoodianos. Ele prossegue, se dirigindo a De Mille: ‘Eu te respeito, mas eu não gosto de você. Eu não gosto de nada que você defende, nem do que você representa.’ A moção não foi votada. Não posso me furtar a compreender esse face a face tanto em seu sentido político (Ford e De Mille, homens ‘de direita’, não têm a mesma concepção da América e da democracia), quanto em sua dimensão artística. Duas práticas da mise en scène que são também duas formas de pensar a vida em sociedade. De um lado, a tentação espetacular e o culto dos heróis; do outro, a crítica aos fanatismos e o amor pelos gestos simples, a começar pelo modo de filmar. Vejo as escolhas políticas e as escolhas estéticas se corresponderem. O cinema, arte política?”
* Citado por Jean Douchet em sua análise filmada: Em busca de ‘The Searchers’, 52 minutos, produzida pela Scérén (Éducation Nationale, 2003).
Jean-Louis Comolli. Introdução - 1. A inocência perdida, in: Voir et Pouvoir. L’innocence perdue: cinéma, télévision, fiction, documentaire. Lagrasse: Verdier, 2004, p. 15-16 (minha tradução)